22 DE MARÇO 5º DOMINGO DA QUARESMA
Serviço e solidariedade como marcas das ações e discursos de Jesus
I INTRODUÇÃO GERAL
A disposição para o serviço é essencial. Muitas vezes pensamos a vida cristã a partir de possíveis privilégios que possamos ter. Queremos tudo de Deus, desde que ele não exija nada de nós. Nosso coração entra em aliança com Jesus não para vivermos privilégios, mas para que aprendamos a viver na dimensão do serviço.
II COMENTÁRIOS AOS TEXTOS BÍBLICO
1) I leitura: Jr 31,31-34
A primeira leitura traz um texto pequeno, mas denso de conteúdo. Desde o v. 23 encontramos retratados os diversos aspectos da restauração durante e logo após o exílio, e, especificamente nos vv. 31-34, o aspecto decisivo é a nova aliança escrita no coração do ser humano (ver também Ezequiel 16,59-63). Jeremias faz questão de frisar que a nova aliança é bastante diferente daquela aliança firmada com os pais no Egito. Mas o que se entende por nova aliança? Antes é preciso relembrar que a libertação do Egito não foi um evento qualquer. É considerada o início da história de Israel. Portanto, mencionando a aliança do Egito e opondo-lhe a nova, Jeremias quer dizer que esta deve ser vista como algo especial.
A nova aliança introduz um período equivalente ao iniciado com a primeira. Aliança que inaugura uma grandeza tão ampla quanto a inaugurada com o surgimento de Israel. Em outras palavras, a nova aliança inaugura uma nova história de Israel. E qual o perfil dessa nova história? É justamente o surgimento de uma sociedade que respeite a relação com o semelhante, que respeite sua individualidade, sua propriedade, seu direito à vida e à liberdade; uma sociedade onde não se oprime e se defende a vida dos estrangeiros, órfãos e viúvas; uma sociedade em que o ser humano é tratado como sujeito, e não como coisa. Mas o que há de novo? A novidade da segunda aliança é esta: “colocarei minha lei em seu peito e a escreverei em seu coração” (v. 33). A vontade de Deus já não será algo vindo de fora, necessitando de interpretação, de explicação e de ensino. A vontade do ser humano passa a ser idêntica à vontade de Deus, a qual deixa de ser algo alheio. Isso indica que haverá absoluta identificação e espontaneidade no cumprimento da vontade de Deus. Todos, grandes e pequenos, conhecerão Javé. E basta lembrar que “conhecer” não deve ser reduzido a um conhecimento intelectual, mas significa um conhecimento prático que envolve toda a existência do ser humano; uma experiência íntima de todos com Javé. De todo modo é preciso salientar que a nova aliança somente é possível porque Javé perdoa e esquece as culpas e os erros. É o próprio Javé que cria as condições necessárias para que a nova aliança possa, de fato, se realizar.
2) II leitura: Hb 5,7-9
Jesus não precisa atribuir a si mesmo qualquer título. Não vê necessidade de construir para si um nome. A arrogância não se faz presente e não o atinge. O título vem de fora, isto é, de Deus. Ao não olhar para si mesmo, Jesus pode ser chamado, ao mesmo tempo, de Filho de Deus e de sacerdote da ordem de Melquisedeque. O fundamento dessa atribuição pode ter sido o fato de Jesus ser solidário com a humanidade ao enfrentar a morte.
A solidariedade é, pois, definidora da verdade. Somos sempre em relação aos outros. E deixamos de ser quando voltamos nossas costas aos outros. Dito de outra forma, amamos uns aos outros ou destruímos uns aos outros. Jesus resolveu trilhar o caminho da solidariedade. Para ele, a morte não era um dado problemático, porém a falta de solidariedade, esta, sim, seria um problema de difícil convivência.
3) Evangelho: Jo 12,20-33
A segunda e terceira leituras se referem à paixão e à morte de Jesus. A carta aos Hebreus vê o significado profundo desse drama na atitude de obediência de Jesus durante sua existência. Todavia, não é tão simples assim pensarmos em obediência. Como verificá-la e como saber o que Deus espera de cada um de nós? Poderíamos pensar em dois caminhos/respostas. Um deles nos levaria aos gregos, que buscam a Jesus e, em determinado momento, dizem: “Queremos ver Jesus” (v. 21). Um caminho mais seguro, que não exige praticamente nada deles. No entanto, João indica um caminho um tanto quanto mais arriscado e difícil de assimilar: “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (v. 24).
O discípulo e missionário de Jesus Cristo deve compreender que a obediência da fé consiste em aceitar sua condição mortal – isto é, de provisoriedade – e dar sentido ao que é e faz à luz da própria paixão e morte de Jesus. A autenticidade do caminho que Jesus percorreu é reconhecida por Deus. Da mesma forma que o grão de trigo morreu para dar vida em abundância, Jesus solidariamente morreu a fim de que a vida superabundasse naqueles que já estavam mortos.
No entanto, é preciso ressaltar que não encontramos em Jesus nenhuma situação que nos lembre um fanático suicida, e muito menos seu comportamento nos lembraria o de um masoquista. Durante todo o seu ministério encontramos Jesus preocupado em consolar e libertar de seus sofrimentos as pessoas com as quais se encontrava. Ele não olhava primeiramente para os pecados das pessoas, e sim para o sofrimento delas, a fim de se apresentar como alguém solidário. Se dizemos que Jesus aceita para si mesmo uma situação de perseguição e de martírio, é porque ele faz um caminho marcado pela solidariedade e pelo amor. Ele não sofre por sofrer, assim como não atribui valor ao sofrimento pelo qual passa.
A morte é a capacidade do grão de liberar a capacidade da vida que possui. Mas como poderíamos viver sem a convicção de que somente crescemos quando nos doamos? Jesus é o grão de trigo semeado para que nossa fome possa ser saciada. “Foi precisamente para esta hora que eu vim”, indica a firme decisão de Jesus. Ele não abrirá mão de um projeto de solidariedade junto aos pequeninos e desamparados deste mundo.
O v. 21 é emblemático. A pergunta dos gregos revela muito mais do que desejavam: “Senhor, queremos ver Jesus”. Muito possivelmente, todos querem ver Jesus. Afinal, ele havia se transformado numa celebridade. Suas ações e discursos já não podiam passar despercebidos. Mas o fato de apenas ver Jesus não transforma ninguém em discípulo. Sempre houve certa quantidade de pessoas que seguiam Jesus de longe. Ao tomar certa distância de alguém, dizemos não a qualquer forma de compromisso. Se muito perto estiver, é possível que o mestre interrompa meu espaço reservado com alguma pergunta incômoda, por exemplo: “Vem e segue-me”.
Jesus está em Jerusalém. A cidade santa também será o local do martírio e da dor. Pois é exatamente nela que Jesus deixa bem claro o sentido de sua missão: dar a própria vida para que todos tenham vida. Jamais um único grão de trigo, ao cair na terra, produziu tanto fruto! Na perspectiva de Jesus, a crucificação não é motivo de derrota e muito menos de desânimo. Trata-se de um momento ideal para ressignificar a vida por meio da solidariedade. Nesse sentido, a crucificação não representa para Jesus o final da jornada, e sim a melhor resposta que ele poderia dar às vítimas da sociedade.
Discipulado também tem a ver com serviço. Não se segue Jesus apenas para lhe fazer companhia. Não se trata de uma viagem agradável entre amigos pelo caminho. Contrariamente a esse entendimento, o próprio Jesus diz: “Se alguém quiser servir a mim, que me siga. E onde eu estiver, aí também estará o meu servo. Se alguém serve a mim, o Pai vai honrá-lo” (v. 26). Não se faz discípulo sem disposição para o serviço, e muito menos se serve a Jesus sem o serviço aos irmãos e irmãs.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
– “Quero ver Jesus” deveria ser nossa oração diária. Discipulado verdadeiro é aquele que nos leva a contemplar a face de Jesus no dia a dia. Caminha-se com Jesus não apenas um dia, e sim diariamente. Muitos são aqueles que se apresentam como discípulos por temporada e logo depois desaparecem, a fim de reaparecer em outro momento.
– Frutos acontecem quando saímos de nós mesmos e nos doamos aos outros. Essa é a lógica que rege a vida cristã. Quem se economiza fica do mesmo tamanho. Todavia, aquele que se doa acaba por se multiplicar. Quanto mais partilharmos nossa vida, mais frutos colheremos.
Luiz Alexandre Solano Rossi
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Unicamp e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da PUCPR. Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade. E-mail: luizalexandrerossi@yahoo.com.br
Fonte: Vida Pastoral
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