2. NOSSAS REFERÊNCIAS, NOSSAS FONTES DE INSPIRAÇÃO, NOSSOS MODELOS
2.1. O CANTO BROTA DA VIDA
2.1. O CANTO BROTA DA VIDA
47. Por que se canta numa celebração litúrgica? Por que o canto, a música, a dança têm aí tamanha importância? Importa responder bem a estas perguntas. Letristas e compositores, cantores e instrumentistas, regentes ou animadores do canto, coreógrafos, equipes de liturgia e assembléias, todos ganharemos em saber as razões do nosso cantar. Todos lucraremos em poder desempenhar cada um o seu papel, com pleno conhecimento de causa.
48. O Apóstolo Pedro insistia com os cristãos do seu tempo, em plena perseguição, para que não se perturbassem, sempre prontos a dar a razão de sua esperança (1Pd 3,15). No momento da celebração da fé, a comunidade cristã, sobretudo através do canto, testemunha a sua esperança da maneira mais solene e vibrante, ao proclamar, como assembléia sacerdotal, as obras maravilhosas daquele que nos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa (1Pd 2,9).
49. Trata-se evidentemente de celebrações, de cantos, que brotam das profundezas do ser... celebrações e cantos que se enraízam nas emoções e aspirações profundas dos que desejam a vida (Sl 34,13), dos que têm fome e sede de justiça (Mt 5,6), ao encontro das quais o Senhor vem (Lc 12,43; Ap 22,20).
2.1.1. Do grito de admiração ao aleluia da ação de graças
50. A vida é bela, como diz o canto popular:
Eu fico com a pureza da resposta das crianças:
é a Vida, é bonita e é bonita!
Viver e não ter a vergonha de ser feliz,
cantar e cantar e cantar
a beleza de ser um eterno aprendiz!...
Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será,
mas isso não impede que eu repita:
é bonita, é bonita e é bonita!
Gonzaguinha
51. A beleza da vida encanta as crianças e os que, como as crianças, são capazes de percebê-la a cada passo e da vida se tornar eternos aprendizes. Desta única fonte, que é a Vida, brotam o sorriso e o canto. O sorriso de quem contempla e se deleita. O canto de quem vibra e celebra.
52. O músico e liturgista J. Gelineau já observou: De quem canta espontaneamente, se diz que ele ou ela está feliz. O canto é sinal de alegria. Mas de onde vem esta alegria que leva a cantar? Ela nasce de um sentimento de plenitude no ser vivente que se expande sem amarras... Diante da beleza que o arrebata, o ser humano deixa subir de sua alma um grito de admiração. Ele sai de si mesmo com o som de sua boca, para se deixar carregar até o objeto do seu louvor. Definitivamente, o canto é a
imagem viva do sacrifício espiritual.
53. Se, como dizia Santo Agostinho, cantar é próprio de quem ama, diante da Divindade é possível que o primeiro sentimento seja mais de estupor, e a primeira atitude seja cobrir o rosto, como Moisés (Ex 3,6); exclamar: Ai de mim, estou perdido!, como Isaías (Is 6,5) ou: Afaste-se de mim, porque sou um pecador!, como Simão Pedro (Lc 5,8). Mas, quando se vai estabelecendo uma relação de confiança entre o ser humano e o Deus da Aliança, as expressões variam da admiração diante da majestade divina e do seu poder, que leva ao canto de adoração (Sl 95/94), à admiração diante da beleza e da bondade da criação, que inspira o canto de ação de graças (Sl 104/103); ou, finalmente, a admiração diante do amor fiel e libertador do Senhor da História, que faz explodir o Aleluia dos redimidos (Sl 146/145). E todos os recursos são utilizados para exprimir de maneira total esse louvor:
Louvem a Deus tocando trombetas,
louvem-no com cítara e harpa!
Louvem a Deus com dança e tambor,
louvem-no com cordas e flauta!
Louvem a Deus com címbalos sonoros,
louvem-no com címbalos vibrantes!
(Sl 150,3-5)
54. Trata-se de uma ação de graças, de um louvor que vai muito além da simples gratidão, do mero agradecimento. É o testemunho solene, a confissão pública de que o Senhor é o único Deus verdadeiro, o único Senhor e Salvador, o único que merece ser louvado, bendito e adorado por sua santidade, grandeza, justiça, bravura e poder, manifestados em obras admiráveis, realizadas em favor do seu povo.
55. Essa é a tônica maior do livro dos Salmos, que desemboca nos cânticos do Novo Testamento, marcadamente nas três louvações em grande estilo reportadas por Lucas logo no início do seu Evangelho, às quais já nos referimos acima e voltaremos depois.
56. Mas é o próprio Jesus Cristo quem fecha com chave de ouro este ciclo de ação de graças, quando, na véspera do dia de sua morte, se reúne com seus discípulos, para tomar com eles a Ceia da Páscoa. Celebrando a libertação definitiva do seu Povo, Jesus se apresenta como o novo Cordeiro Pascal, que oferece seu corpo e sua vida, dos quais o pão repartido entre todos passa a ser o Sacramento... e apresenta seu Sangue como Sangue da Nova e Eterna Aliança, do qual o vinho partilhado entre todos se torna igualmente Sacramento... E ele faz isso dando graças ao Pai, pois Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho único (Jo 3,16) e lhe deu esse poder de dar a vida... e de retomá-la (Jo 10,18). Jesus nos manda, então, celebrar estas coisas em sua memória (1Cor 11,24-25). E, depois de terem cantado os salmos, foram para o monte das Oliveiras (Mt 26,20). É claro que, a partir de então, Jesus e os seus discípulos deram aos Salmos de sempre, e a todos os cantos que vierem a ser compostos para a assembléia cristã, a dimensão essencial e terminal de todo louvor: ser a expressão da entrega de nossas vidas em Cristo, pela causa do Reino, para a glória de Deus Pai (Fl 2,11). A partir de então, se inaugura o Cântico Novo dos Redimidos da terra (Ap 5,9), a ação de graças definitiva.
57. • Como autores ou compositores, como agentes litúrgico-musicais, até onde vai nossa capacidade de contemplação e admiração diante do milagre da Vida, do encanto da Natureza e da “passagem” de Deus na História?
• Nosso louvor é fruto do nosso encantamento diante das maravilhas da Criação?
• Nossa poesia emana da contemplação prazerosa da ação de Deus na vida das pessoas e na história dos povos?
• Ou nos contentamos com a repetição medíocre de chavões desbotados e enfadonhos e não conseguimos esconder nosso vazio e nossa superficialidade?
2.1.2. Do grito de socorro à prece suplicante
58. Tem dias que a gente se sente
como quem partiu ou morreu,
a gente estancou de repente
ou foi o mundo, então, que cresceu;
a gente quer ter voz ativa,
no nosso destino mandar,
mas eis que chega a roda viva
e carrega o destino pra lá...
Chico Buarque
59. Setembro passou, outubro e novembro,
Já tamo em dezembro, meu Deus, que é de nós?...
— Meu Deus, meu Deus!
Assim fala o pobre do seco Nordeste
com medo da peste da fome feroz.
— Ai, ai, ai, ai!
Patativa do Assaré - L. Gonzaga
60. E mais: Quando uma criança tem medo, ela dá um grito; quando tem fome, chora. Alguém está em perigo, grita por socorro; está sofrendo, geme. Este grito ou esta queixa precedem qualquer explicação. No entanto, seu significado é desconcertante. É o vexame de querer viver; é a negação de que a morte seja necessária. Para alguém que está pungido pela angústia, é a recusa do desespero, este mundo sem retorno. Consciente ou inconscientemente, o grito é chamado. Ele afirma que existe alguém capaz de escutar e prestar socorro: Se eu posso gritar o suficiente para me fazer escutar, estou salvo!
61. Quando esse grito de socorro, esse gemido angustiado, se torna, por alguma razão, uma experiência espiritual mais profunda, ele pode se tornar melodia e ritmo, música e dança, não tanto para fazer valer o abatimento da dor ou a fatalidade da morte, quanto para alimentar a íntima certeza de que há uma esperança e a última palavra será da Vida.
62. E quando esta experiência é vivida em clima religioso ou à luz da fé no Deus da Vida, Deus-conosco, o grito pode se tornar ladainha e multiplicar os Senhor, tende piedade ou os Rogai por nós...
63. É confrontado com a dor, com o pecado e com a morte que o ser humano faz a experiência mais realista e objetiva dos seus limites e mais facilmente intui a presença de Alguém que deve estar por perto, que está com a gente.
64. Esta é, pelo menos, a experiência do povo de Israel: diante do seu Deus, ele se sente como se nada fosse sem seu Salvador, nada pudesse sem seu Defensor. Portanto, nada de estranhar que os Salmos, o livro de cantos e oração do povo, sejam antes de tudo, e com uma freqüência que dá na vista, gritos de socorro de quem experimenta a fragilidade, o pecado; de quem se sente ameaçado e perseguido; de quem se sente injustiçado e oprimido; de quem sofre os achaques da doença e da dor; de quem sente a morte rondando por perto. É a condição humana, que do abismo de suas angústias e frustrações, dos seus medos e remorsos, de sua ansiedade e sede de justiça, faz subir o seu grito eficaz até os ouvidos de um Deus que é ternura e graça, justiça e libertação:
Das profundezas eu clamo a ti, Senhor:
Senhor, ouve o meu grito!
Salmo 130(129)
65. Não é por nada que o Filho de Deus, ao assumir-se como Filho do Homem, vale-se dos cantos do seu povo para fazer chegar ao Pai os lamentos de toda a humanidade, as súplicas de todos os oprimidos, que clamam por sua boca:
Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?
Salmo 22(21),2; cf. Mt 27,46
66. Seu clamor, porém, é sobretudo um grito confiante, mesmo in extremis:
Em tuas mãos entrego o meu espírito.
Salmo 31(30),6; cf. Lc 23,46
Pois ele carregava consigo a certeza maior:
Eu via sempre o Senhor diante de mim,
porque ele está à minha direita,
para que eu não vacile.
Salmo 16(15),8; At 2,25
67. É por isso que o canto da assembléia cristã, solidária com todos os sofrimentos da humanidade, será, antes de tudo, gemido e clamor, cheio de esperança, é verdade, pois na esperança já fomos salvos (Rm 8,24). Quer se trate de um grito ingênuo e breve, quer de uma lamentação prolongada e insistente, são sempre gemidos e clamores de quem já se sabe, de antemão, escutado e atendido, pois, no cerne da sua fé, está a certeza maior, a essência mesma da Boa Nova: Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo (Mt 28,20).
68. • Como autores, compositores, agentes litúrgico-musicais, até onde vai a nossa experiência pessoal da dor, do pecado, da opressão, da perseguição e da morte? Até onde vai nossa solidariedade com os sofredores, pecadores, oprimidos, excluídos e perseguidos?
• Nossa arte, nossa música, nosso canto, nossa inspiração brotam dos porões da humanidade, das profundezas da condição humana?
• Ou será que nosso canto, nossa música, nossa arte, dão a impressão de superficialidade, insensibilidade e alienação?
2.1.3. Do grito de surpresa à celebração da comunhão e da unidade
69. Sonho, que se sonha só, pode ser pura ilusão.
Sonho, que se sonha juntos, é sinal de solução.
Então vamos sonhar, companheiros,
Sonhar ligeiro, sonhar em mutirão!
Zé Vicente
70. A experiência do encontro tem sido fonte de inspiração para poetas e músicos. E quando esta experiência se dá entre os que comungam da mesma fé e esperança no Deus da Aliança, que nos assume como seu Povo e nos educa para a justiça e a fraternidade através dos seus profetas e do seu próprio Filho, como não prorromper numa efusão incontida de prazer e alegria, como a do Salmo 133(132)?
Vejam como é bom, como é agradável,
os irmãos e irmãs viverem unidos!
71. Como escrevia um insigne músico e liturgista há mais de trinta anos, a união das vozes exprime a união dos corações. O canto em coro manifesta a comunidade e a constitui. Ele ordena os passos daqueles que avançam em caravana ou em cortejo; coordena os gestos dos remadores ou dos ceifeiros; coloca em uníssono os corações de um povo a cantar o hino da vitória; estreita a amizade dos convivas na festa das bodas.
72. A música, por força dos sons e do ritmo, provoca a participação, ao mesmo tempo, em termos de emoção, de animação e de unanimidade da assembléia, ajuntando-a e projetando-a na imensidão do mistério de Deus, ou seja, no seio da Trindade-Comunhão, em Jesus Cristo, cuja presença é evocada com peculiar eficácia. Essa eficácia 'congregante' da música tem tudo a ver com a palavra do Senhor: onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles (Mt 18,20).
2.1.4. Da celebração da unidade ao canto de resistência
73. É o que testemunham tantas experiências colhidas no seio da cultura popular, como as “toadas do eito”, quando da limpa dos roçados; ou as toadas de mutirão, ao se “tapar” uma casa de taipa; ou ainda o canto das “destaladeiras de fumo” e o das “quebradoras de coco”, em ambiente rural. Em meio urbano, algumas de suas expressões musicais são capazes de estimular as “galeras” ou os foliões a dançar, em variados tipos de ritmos, noites e dias seguidos, quase sem pausa. Estas e tantas outras expressões autênticas da índole cultural que emergem espontaneamente no meio de nosso povo ganham força, sobretudo pelo fato de virem revestidas de música.
74. Não teria brotado de uma experiência semelhante um canto como o Salmo 46(45)?
Deus é nosso refúgio e nossa força,
defensor sempre alerta nos perigos.
Por isso não tememos se a terra vacila,
se as montanhas se abalam no seio do mar;
se as águas do mar estrondam e fervem,
e por sua fúria estremecem os montes.
Nele, por três vezes, se repete o refrão:
O Senhor dos exércitos está conosco,
nossa fortaleza é o Deus de Jacó!
75. Não daria para lembrar aqui igualmente o canto quase ininterrupto dos romeiros, que viajam, muitas vezes caminhando a pé longos percursos, até chegar ao ponto terminal da romaria de seus sonhos?
Oh! Que caminho tão longe,
tão cheio de pedra e areia!
Valei-me, meu Padre Cícero
e Mãe de Deus das Candeias!
Folcmúsica do Juazeiro do Norte, CE
76. Mas é, sobretudo, na experiência das Comunidades Eclesiais de Base e dos Movimentos e Pastorais de cunho sócio-libertador que vamos colher as expressões mais vibrantes e fortes dessa fé e resistência, dessa união que faz a força, pois no seu cerne está o Senhor da História, o próprio Deus:
Ó povo dos pobres, povo dominado,
Que fazes aí com ar tão parado?
O mundo dos homens tem de ser mudado,
Levanta-te, povo, não fiques parado!
Autor desconhecido
Igreja é povo que se organiza,
gente oprimida buscando a libertação,
em Jesus Cristo, a Ressurreição!
Autor desconhecido
77. E a caminhada, quase interminável e cansativa, de repente se torna, ao canto exuberante de religiosidade e de fé, uma fonte cada vez mais abundante de alegria e entusiasmo, à medida que os peregrinos vão se aproximando da “Terra Prometida”, a Cidade da Justiça e da Paz. Esse é o clima que permeia os “Cânticos das Subidas” (Salmos 120/119 a 134/133), culminando na euforia do Salmo 122(121):
Alegrei-me quando me disseram:
Vamos à casa do Senhor!
2.1.5. O canto como sinal de festa
78. Uma festa atinge o seu clímax quando se começa a cantar ao som dos instrumentos. O canto, a música, a dança, têm sido e continuarão sendo, sem dúvida, em todos os tempos e culturas, a expressão mais vibrante de festa e de comunhão de um povo e o símbolo mais expressivo daquela realidade escatológica que está nas aspirações de todos os corações sedentos de justiça e felicidade.
Aclamem a Deus, nossa força,
aclamem ao Deus de Jacó.
Acompanhem, toquem os pandeiros,
a harpa melodiosa e a cítara.
Toquem a trombeta pelo novo mês,
na lua cheia, dia da nossa festa.
Salmo 81(80),2-4
79. • Você já se havia dado conta da importância do canto para a vida da sua comunidade de fé?
• Sua arte, seu ministério litúrgico-musical, estão servindo eficazmente ao processo de unidade-identidade comunitária?
• Têm sustentado a fé e garantido a resistência nos momentos de crise, de luta ou perseguição?
• Têm propiciado momentos vibrantes e gratificantes de festa e confraternização?
• A música, o canto da sua comunidade, se enraízam numa experiência humana e espiritual profunda, ou são mais uma rotina sem graça, uma “festividade” vazia?
2.2. A IMPORTÂNCIA DA MÚSICA NA CAMINHADA DO POVO DE DEUS
80. Não é por acaso que a Bíblia é ilustrada por admiráveis poemas, expressões líricas ou épicas da experiência espiritual de um povo que vem de longe, por força de uma Palavra, de um chamado, e que vai adiante, incansavelmente, "caminhando e cantando e seguindo a canção".
81. Na Bíblia, existem mais de seiscentas referências ao canto e à música. Do primeiro livro, o Gênesis, que se inicia justamente com um canto à Criação (Gn 1), ao último, o Livro do Apocalipse, que aparece como o desenrolar de uma esplêndida e majestosa liturgia, a música, o canto, a festa, parecem ser não apenas fonte inesgotável de energia para os que estão a caminho, mas a tônica dominante da própria realidade terminal e definitiva, que chamamos de Reino de Deus.
2.2.1. A importância da música na história de Israel
82. O Povo de Israel nasceu numa encruzilhada de culturas e civilizações. Como a Bíblia que esse povo vai escrevendo, também sua música, seu canto, carregam as marcas desse entrelaçamento cultural. Só pelos anos 1000 antes de Cristo, sob o reinado de Davi, é que se formou uma tradição musical com identidade definida e surgiu a primeira coletânea de Salmos.
83. É interessante observar que mais de um terço dos Salmos vem acompanhado de indicações detalhadas a respeito do tipo de melodia, do tom, dos instrumentos, do compositor e do intérprete e, além disso, das circunstâncias que deram origem a tal ou qual composição ou das ocasiões às quais é destinada. Vejam-se, por exemplo, os Salmos 33(32), 38(37), 45(44), 46(45), 51(50), 52(51), 54(53), 55(54), 56(55), 57(56), 60(59), 88(87), 98(97), 150.
84. Entre todos os cânticos do Antigo Testamento, sobressai o Cântico de Moisés e Míriam (Ex 15). Celebrando a esplendorosa intervenção do Deus Libertador, quando da passagem dos hebreus pelo mar Vermelho, este cântico teve importância relevante na tradição litúrgica judeu-cristã. Foi o primeiro dos cânticos do AT a ser adotado na liturgia da Igreja, ressoando até hoje, cada ano de novo, na Vigília Pascal, ponto culminante do nosso Ano Litúrgico.
85. A essa expressão épica da fé pascal vem se ajuntar, qual maravilhoso contraponto, o Cântico dos Cânticos, poema de amor, expressão lírica da fé de Israel, que brota de uma rica experiência do amor conjugal, carregada de sensualidade e ternura, uma faísca do Senhor (Ct 8,6), capaz de nos transportar à intimidade mesma do amor divino. Coisas do Espírito, que ora sopra com força e poder, ora com suavidade e ternura.
86. A música aparece como elemento de destaque na Liturgia do Templo, assim descrita em seu momento inaugural:
Então Davi convocou todo o Israel em Jerusalém, a fim de transferir a Arca do Senhor para o lugar que ele havia preparado. (...) Davi mandou os chefes dos levitas organizarem seus irmãos cantores, para entoarem cânticos festivos acompanhados de cítaras, liras e címbalos. (...) Os músicos Emã, Asaf e Etã tocavam forte os címbalos de bronze. Zacarias, Oziel, (...) tocavam lira para acompanhar vozes de soprano. Matatias, Elifalu, (...) tocavam cítara oitavada, para marcar o ritmo. (...) Os sacerdotes Sebanias, Josafá, (...) iam tocando trombeta na frente da arca de Deus. (...) Todo o Israel participou da transferência da Arca da Aliança do Senhor, no meio de aclamações, som de trombetas, clarins e címbalos, além da música de liras e cítaras. A Arca da Aliança do Senhor estava entrando na Cidade de Davi, quando Micol, filha de Saul, espiou pela janela e viu o rei dançando alegre (...).
87. Entraram com a Arca de Deus e a instalaram dentro da tenda que Davi tinha armado para ela. (...) Davi nomeou levitas para exercerem o ministério diante da Arca do Senhor, a fim de celebrar, glorificar e louvar ao Senhor, o Deus de Israel. (...) Eles tocavam liras e cítaras, enquanto Asaf fazia soar os címbalos. Os sacerdotes Banaías e Jaziel tocavam continuamente as trombetas diante da Arca da Aliança de Deus.
Nesse dia, pela primeira vez, Davi confiou a Asaf e a seus irmãos este louvor ao Senhor:
Celebrem ao Senhor, invoquem o seu nome,
anunciem entre os povos as suas façanhas!
Cantem para ele ao som de instrumentos,
recitem suas maravilhas todas.
(1Cr 15-16)
88. Esses relatos deixam transparecer uma rica e jubilosa liturgia, na qual as aclamações, a música, o canto, a dança, são elementos constitutivos e eminentes da celebração da fé de um povo.
89. É o que se repete, com renovado entusiasmo, por ocasião da restauração após o Exílio na Babilônia, ao serem reconstruídos os muros de Jerusalém. Segundo Neemias, por ocasião da dedicação das muralhas de Jerusalém, os levitas foram convocados para ir a Jerusalém a fim de celebrar a dedicação com festa e ação de graças, ao som de cítaras, címbalos e harpas. E o povo festejou, pois Deus lhe havia dado grande motivo de alegria. Até as mulheres e crianças participaram da festa. Ouvia-se ao longe o barulho da festa em Jerusalém (Ne 12,27-43). Música, canto, procissões e grande alegria, eis aí os componentes de um ritual que brota da exuberância da fé, uma liturgia vibrante, uma alegria contagiante.
90. Mas são os Salmos, sobretudo, o registro mais significativo da experiência de um povo a traduzir sua vida e sua fé em música, canto e dança. Eles são o convite mais sugestivo a celebrar a vida e a fé tocando, cantando e dançando. Resumo orante da fé de nossos pais, eles são o coração palpitante de toda a Bíblia. Os Salmos foram o livro de canto do Povo de Israel, de Maria, de Jesus de Nazaré, dos Apóstolos, da Igreja nascente e continuam sendo, séculos afora, até hoje, o repertório elementar da celebração cristã. Todo aquele que lida com música litúrgica cristã encontra necessariamente, no Livro dos Salmos, o seu primeiro referencial. É o canto maior, que vai das profundezas do abismo (Sl 130/129) às culminâncias celestiais (Sl 19/18), envolvendo no seu embalo os seres humanos, a vida individual de cada um (Sl 131/130) e a história dos povos (Sl 136/135), a natureza e todas as suas maravilhas (Sl 104/103), o universo e tudo quanto ele contém (Sl 148). Ou, como dizia um pioneiro do canto litúrgico inculturado entre nós, um canto do chão, que o céu e a terra estremecem.
91. • A Bíblia tem sido para você, como artista ou agente litúrgico-musical, uma referência permanente, uma fonte primeira de inspiração, uma escola de poesia e oração, sobretudo os Salmos?
2.2.2. A importância da música na comunidade cristã primitiva
92. Da primeira Comunidade Cristã se diz: Eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos Apóstolos, na comunhão fraterna, no partir do pão e nas orações. (...) Diariamente, todos juntos freqüentavam o Templo e nas casas partiam o pão, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E a cada dia o Senhor acrescentava à comunidade outras pessoas que iam aceitando a salvação (At 2,42-47).
93. Enraizados numa tradição mais que milenar, os protagonistas do Novo Testamento, Maria, José, Jesus e os Discípulos, a Comunidade Cristã primitiva, são pessoas que continuam a celebrar sua fé cantando e exultando de alegria. É assim que os Salmos tão freqüentemente se encontram nos lábios de Jesus e são o livro do Antigo Testamento mais citado nos livros do Novo.
94. Se começarmos a percorrer os Evangelhos, especialmente o de Lucas, que forneceu as referências elementares para a constituição do Ano Litúrgico, e avançarmos pelas Cartas de Paulo até chegarmos ao Apocalipse de João, logo nos surpreenderemos com a abundância e a beleza de textos poéticos. Estes, com certeza, provieram da rica experiência litúrgico-musical das primeiras Comunidades e marcaram significativa presença na tradição litúrgica da Igreja até hoje, tanto na Liturgia das Horas quanto na celebração da Ceia do Senhor e dos demais Sacramentos:
• As Bem-aventuranças, nas suas duas versões, respectivamente de Mateus (Mt 5,3-10) e de Lucas (seguidas dos “ais”, Lc 6,20-26);
• Já mencionamos acima os três Cânticos de Lucas, que marcam o Evangelho da Infância: o de Maria (Lc 1,46-55), o de Zacarias (Lc 1,68-79) e o de Simeão (Lc 2,29- 32). Esses três Cânticos tiveram importância decisiva na composição da Liturgia das Horas da Igreja e aparecem como ponto culminante do louvor, respectivamente, no Ofício da Manhã, da Tarde e da Noite. Mas não podemos esquecer o cântico angélico do Glória (Lc 2,14), que teve seu desdobramento na Igreja grega até chegar a ser a grande doxologia (glorificação) que hoje conhecemos;
• O prólogo de João (Jo 1,1-18), que celebra a nova Criação em Jesus Cristo e vale como réplica ou, na linguagem dos antigos, “anti-tipo” do Hino da Criação do Gênesis;
• Os numerosos hinos paulinos, que tão apropriadamente ilustram as Cartas do Apóstolo das gentes (Ef 1,3-14; 5,14; Cl 1,12-20; 1Tm 1,17; 3,16; 2Tm 2,11-13), valendo destacar os dois hinos cristológicos de Fl 2,6-11 e 1Tm 6,15-16;
• O hino batismal de Pedro (1Pd 2,21-25);
• Os hinos e aclamações, que ocorrem a cada passo na liturgia celeste descrita no Livro do Apocalipse e são, sem dúvida, como que um “retrato cantado” das celebrações das comunidades joaninas. A começar pelo Santo (Ap 4,8), que, tomado da visão do Profeta Isaías (Is 6,3), já era cantado no culto da Sinagoga e continuava ecoando nas assembléias cristãs, seguem como se fossem um concerto sem fim: Ap 4,11; 5,9- 10.12.13.14; 6,10; 7,10-12; 11,15.17-18; 12,10-12; 15,3-4; 16,5-6.7; 19,1-8... É o cântico novo dos redimidos, a celebrarem com vibração intensa os novos céus e a nova terra, já que, na Páscoa nova do Cordeiro, Deus faz novas todas as coisas (Ap 21,1-5). Quanto a nós, a caminho do Reino, numa tensão permanente entre a certeza do que desde agora já somos e a expectativa do que vamos ser (1Jo 3,2), só nos restará gritar todo o tempo com o Espírito e a Esposa: Vem! Vem, Senhor Jesus! (Ap 22,17.20).
95. Tudo quanto acima lembramos só faz comprovar o acerto de uma insistente recomendação de Paulo e a generosa resposta das primeiras comunidades, que tão bem a concretizaram: Juntos recitem salmos, hinos e cânticos inspirados, cantando e louvando ao Senhor de todo o coração. Agradeçam sempre a Deus Pai por todas as coisas, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo (Ef 5,19-20; cfr. Cl 3,16).
96. • Como letrista ou compositor litúrgico, como animador do canto da sua Comunidade, em quem você se espelha? Em Maria e seu canto, em Zacarias ou Simeão, nas Comunidades de Paulo, de Pedro ou de João? Nas Bem-aventuranças?
• De que forma você, como artista ou agente litúrgico-musical, entende e cultiva a sua identidade cristã? Quais são suas “musas”? Quais são suas referências principais? Quais são suas fontes?
2.2.3. A importância da música litúrgica na Igreja dos primeiros séculos
97. No ano 112 da era cristã, um autor latino, Plínio, o Jovem, em sua famosa Carta ao Imperador Trajano, assim se expressava a respeito dos cristãos: Eles se reúnem antes do amanhecer e cantam a Cristo, a quem consideram como deus. O testemunho deste pagão nos dá a certeza de que a celebração cristã da fé, enraizada na experiência litúrgica do povo da Antiga Aliança, desde as primeiras comunidades, como já vimos, vai continuando séculos afora, como experiência de um povo que vibra e canta, e leva adiante o seu projeto de vida.
98. Em meados do século II, Justino, Mártir (+165), em sua Apologia dirigida ao imperador Antonino Pio, sublinha a excelência do louvor e do canto dos cristãos, comparados aos sacrifícios pagãos: Porque a única honra digna d’Ele, conforme aprendemos, é não consumir pelo fogo o que por Ele foi criado para nosso alimento, mas oferecê-lo para nós mesmos e para os necessitados, e, mostrando-nos agradecidos para com Ele, dirigir-lhe, por nossa palavra, preces e hinos.
99. Mais adiante, lá pelo final do século III, início do IV, Eusébio de Cesaréia (+ 339), comentando os Salmos, dá conta de que, através do mundo inteiro, em todas as Igrejas de Deus, tanto nas cidades como no interior e no campo, os povos de Cristo, reunidos de todas as gentes, cantam hinos e salmos (...) ao único Deus anunciado pelos profetas, em alta voz, de tal maneira que o som do canto pode ser escutado até por aqueles que estão fora do templo.
100. E como é edificante escutar João Crisóstomo (+ 407), em homilia na igreja de Santo Irineu, em Constantinopla, exaltar a nobreza dos cristãos a transparecer do próprio canto unânime da assembléia: O salmo que acabamos de cantar fundiu as vozes e fez subir um só canto, plenamente harmonioso: jovens e velhos, ricos e pobres, mulheres e homens, escravos e livres, todos não usaram senão de única voz. (...) Juntos, não formamos senão um coro, numa total igualdade de direito e de expressão, pelo que a terra imita o céu. Tal é a nobreza da Igreja.
101. Mas é sobretudo em Milão, com o santo bispo Ambrósio (+ 397), e a seguir em Hipona, no norte da África, com seu discípulo Agostinho (+ 430), que nós vamos conhecer, quem sabe, um primeiro ensaio de pastoral da música litúrgica.
102. O canto da assembléia é algo que encanta Agostinho: Com exceção dos momentos em que se fazem as leituras, em que se prega, em que o bispo reza em alta voz, em que o diácono inicia a ladainha da prece comum (logo antes de se trazer o pão e o vinho para o altar), existe algum instante em que os fiéis reunidos na igreja não devam cantar? Na verdade, não vejo o que eles poderiam fazer de melhor, de mais útil, de mais santo.
103. Segundo o bispo de Hipona, poucas coisas são tão próprias para excitar a piedade nas almas e inflamá-las com o fogo do amor divino como o canto. Claro que não falta quem pense diferente e até lhe faça oposição. Já naquele tempo era necessário enfrentar certa preguiça ou acomodação dos fiéis. Os seguidores das seitas (donatistas) eram muito mais zelosos do que eles. E quanto mais as comunidades se tornam numerosas, tanto menor tende a ser sua participação no canto.
104. Durante muito tempo, o Saltério havia sido praticamente o único livro de cantos da Igreja cristã. Era uma herança da Sinagoga e se costumava cantar o salmo inteiro por um solista, numa melodia sofisticada, recheada de melismas. Alguns cantores, ou toda a assembléia, repetiam em uníssono um verso determinado, que fazia as vezes de refrão. Santo Ambrósio conhecera no Oriente uma experiência de salmodia de tipo siriano, muito mais viva e animada, que consistia em repartir a assembléia em dois coros, a alternarem os versos do salmo. O bispo a introduz com pleno sucesso na basílica de Milão. Segundo o seu testemunho, os fiéis, que não conseguiam ficar quietos um instante sequer durante as leituras, deixavam toda agitação quando se entoava o salmo, e continuavam a cantar com harmonia e entusiasmo.
105. É curioso saber como estes cantos estrangeiros, orientais, numa tradução enrolada do texto hebreu, carregada de palavras pouco familiares, com seu paralelismo estranho em termos de pensamento e de propostas, seus melismas bizarros a se prolongarem sobre uma única sílaba, tinham, apesar de tudo, conquistado corações que normalmente teriam se mostrado reticentes e ouvidos acostumados à métrica clássica, e isto, mesmo entre ocidentais latinos, amigos da sobriedade. Em qualquer época, pode-se constatar que “os suspiros da pomba espiritual nas fendas do rochedo” são de todos os tempos e lugares; mal dá para enxergar aí um bem próprio de Israel. E a Igreja, hoje, os canta com mais gosto que a Sinagoga no tempo de Jesus.
106. Mas o que mais impressionou Agostinho, na sua juventude, foram os hinos compostos por Ambrósio e cantados por toda a comunidade. Eles apresentavam um feitio único e original, se comparados aos velhos salmos um tanto bárbaros. Escritos num latim impecável, tinham a marca do seu autor, um patrício cordial, mas comedido em suas palavras, um tanto tenso por conta de sua consciência profissional, sem perder, porém, a ternura; um homem da aristocracia, que podia se permitir ser simples. Nestes hinos não havia uma palavra a mais: encontra-se aí a densidade de um símbolo de fé. Ambrósio opta, então, por um método simples e corriqueiro, ao qual os ouvidos do povo ainda estavam acostumados; a melodia era despojada, quase totalmente desprovida de vocalizes; dessa forma a melodia não prejudicaria o texto. Corriam o risco de parecer enfadonhos por serem claros demais; em compensação, eram facilmente entendidos, como qualquer canção popular.
107. Ambrósio compõe hinos para as diversas horas do dia. Eles iniciam com clara evocação do tempo e da hora. Em seguida, cantam também um ou outro dia da Criação, de acordo com a narração do Gênesis, passando, quase insensivelmente, das realidades provisórias e simbólicas da primeira às visões de futuro da segunda Criação, que se manifestarão por ocasião da vinda de Cristo, mas que, em certo sentido, já começaram. Seguem as imagens das horas do dia, cada uma caracterizada de acordo com sua própria atmosfera, e os fatos ou imagens bíblicos a ela associados. O hino termina com uma prece implorando a ajuda de Deus. Há hinos que cantam os mistérios de Cristo, há outros que celebram a coragem dos mártires e das virgens. Esses hinos, executados alternadamente, estrofe por estrofe, pelos dois coros em que se dividia a assembléia, transformaram um dia a basílica numa fortaleza da verdadeira fé. E é o próprio Agostinho que o atesta em suas Confissões: Não fazia ainda muito tempo que se havia adotado na Igreja de Milão esta maneira de se consolar e se encorajar, onde os irmãos com entusiasmo cantavam juntos na união das vozes e dos corações. Eram tempos de perseguição. Reunidos à noite na basílica, em vigília, os fiéis montavam guarda, dispostos a morrer com seu bispo (...). Foi nesta ocasião que a gente se pôs a cantar os hinos e os salmos segundo o costume das regiões do Oriente, para impedir que o povo morresse de tristeza e de aborrecimento: instituição que a partir de então até hoje se mantém, e que já um grande número, quase a totalidade das tuas ovelhas mesmo, no resto do mundo, tem imitado.
108. O impacto desta experiência do canto da assembléia cristã na alma de um recém-convertido não poderia ser mais bem descrito: Quanto eu chorei por teus hinos e cânticos, aos suaves acentos das vozes de tua Igreja, que me penetravam de vivas emoções! Essas vozes corriam nos meus ouvidos e a verdade se destilava no meu coração; e daí brotavam fervendo sentimentos de piedade, e lágrimas rolavam, e isto me fazia bem ao chorar.
109. Por tudo isso, mais tarde, ao chegar como bispo a Hipona, Agostinho logo introduz tanto o novo método de canto dos salmos quanto esses hinos. Porém, preocupado com os excessos do emocionalismo, Agostinho confessa que muitas vezes pensou em suprimir os hinos e fazer cantar os salmos da maneira como Atanásio de Alexandria havia prescrito a seus leitores: com modulações tão discretas, que tinha mais de recitativo que propriamente de canto. Contudo, mais tarde, ele volta a reconhecer a utilidade do canto em geral, e do canto litúrgico popular: particularmente um texto se enraíza mais facilmente num coração de boa vontade quando é cantado com melodia sugestiva. E Agostinho, em suas explicações literais dos salmos, vai comentando à vontade e com detalhes sobre os antigos instrumentos de música.
110. Ele fala do poder irresistível de um Amém, cantado por toda a assembléia no final de uma prece solene. Amém quer dizer “é verdade, é verdade!” e é de propósito que esta palavra não se traduz, a fim de que apareça ainda mais digna de honra pelo fato do véu de mistério que a envolve. Fala freqüentemente também do poder cativante dos longos melismas do Aleluia, especialmente no Tempo Pascal. É o canto novo do homem novo. Quando a gente o escuta, nosso espírito, por assim dizer, é por ele transformado. Encontramos aí uma pregustação da Cidade de Deus. Por isso, quando o Aleluia volta no tempo determinado, com que alegria o acolhemos! Quanta saudade quando temos de dizer-lhe adeus!
111. Agostinho conhece ainda a força incomparável do canto espontâneo, a jubilação ou o jubilus, um grito sem palavras articuladas que, com certeza, muito convém a quem louva um Deus que nenhuma palavra é capaz de definir. O que é, então, cantar na jubilação? É compreender que as palavras não conseguiriam exprimir o que canta dentro de nosso coração. E observando a experiência dos que durante a colheita ou em qualquer outro trabalho vão cantando, até a ponto de se liberarem das palavras, e, na sua exultação, já não mais pronunciam nem palavras, nem sílabas, mas lançam gritos inarticulados de jubilação, ele conclui: A quem este canto de jubilação melhor conviria do que ao Deus inefável, já que as palavras não podem exprimir o que ele é; e se não és capaz de exprimilo, não tens, entretanto, o direito de calar-te: que te resta senão o canto de jubilação? Que te resta senão que teu coração jubile sem palavras e que a imensidão de tua alegria faça eclodir as barreiras das sílabas?
112. Poucos pregadores terão dado descrição tão exata do fiel que canta na igreja como Agostinho, ao comentar o v. 4 do Salmo 70(71): Senhor, livra-me da mão do ímpio, do punho do criminoso e do opressor. Quem cantar esse verso, seja quem for, não poderá deixar de pensar em suas próprias experiências. Quer ele ouça essas palavras da boca do leitor, quer as pronuncie ele próprio como refrão (trata-se aqui da antiga maneira de cantar os salmos), ele pensa nos pequenos acontecimentos de sua vida pessoal, em tal inimigo, em tal detrator, num outro que queria mandar prendê-lo, ou num outro ainda que escreveu contra ele um bilhete difamatório. E assim ei-lo a “cantar com emoção. Vejam como ele suspira, como suspira profundamente! Ele se põe a cantar com toda a força: ‘Senhor, livra-me da mão do ímpio, do punho do criminoso e do opressor’— é no seu próprio inimigo que ele pensa”.
113. É assim que Agostinho, dando continuidade à obra de Ambrósio, seu pai espiritual, entendeu a importância do canto litúrgico popular e investiu na sua difusão. O fato é que em seu tempo, na sua Igreja, não se viam celebrações sem vida, liturgias resmungadas. Pelo contrário, havia muitas leituras e cantos a ser ouvidos e aqui e acolá um belo canto de todo o povo. “E Agostinho, que foi o maior artista de seu tempo, (...) fazia seu povo cantar, porque o canto é coisa bonita e contribui poderosamente para edificar as almas.” Agostinho era alguém que sabia escutar e apreciar. A arte do canto para ele “era um dom da liberalidade divina e o sinal de alguma coisa muito grande” (Ep 166, 5, 13). Comentando o Salmo 42(41),5, ele se reporta a uma festa eterna, na qual “ressoa uma música inefavelmente agradável e doce ao ouvido do coração”. Concluindo com seu mais autorizado biógrafo: “Agostinho foi um destes grandes privilegiados que ouvem de vez em quando, de longe, os acordes sedutores dos órgãos da catedral celeste”.
114. Dos seis primeiros séculos da nossa Igreja, época marcada pela atuação dos chamados Pais e Mães da Igreja, ou época patrística, podemos afirmar, de modo geral, que o canto litúrgico é exaltado com sobejas referências bíblicas. É canto que reconhece e acolhe os valores humanos e psicológicos do cantar do povo: extravasamento saudável de emoções, comunhão de sentimentos e ideais, a alegria da festa. Os Pais e Mães da Igreja põem em evidência os aspectos simbólicos e os valores celebrativos do reunir-se em coro para cantar: serviço da Palavra, unanimidade que manifesta a unidade em Cristo, sacrifício espiritual, profecia do reino, comunhão com os coros dos anjos e antecipação escatológica.
115. Algo que nos parece muito atual é o fato de os Pais e Mães da Igreja falarem da música com uma visão ampla e articulada, acolhendo as diversas experiências existentes, numa prática celebrativa não distante da vida do povo e ainda não encurralada por regras ou normas intocáveis, como mais adiante acontecerá.
116. Algumas formas musicais desenvolvidas nesse período:
• A Salmodia: execuções solísticas convivem com novos tipos: a dirigidacoletiva (contínua ou alternada); as intercaladas ou responsoriais (recomendam muito o refrão); e as formas variadas de antífonas que favorecem a escuta e a intercessão.
• Os Hinos: nascidos no Oriente, vão se propagando pela Europa, atingindo seu pleno amadurecimento com S. Ambrósio (+ 397).
117. A Salmodia e os Hinos da época patrística dão testemunho de assembléias que vivem a unidade da Fé sem se prender à uniformidade de expressão, pelo contrário, expressando a riqueza e a diversidade cultural da época. As celebrações, enraizadas na vida do povo e na experiência das comunidades, fazem ecoar não só a Palavra bíblica, mas também as palavras que a cultura forja como resposta eclesial.
118. Os séculos IV e V, época áurea da “Ecclesia Mater”, ou seja, da maternidade espiritual da Comunidade Cristã, representam o ponto culminante da organização ministerial das assembléias como plena manifestação do Corpo de Cristo, na diversidade e complementaridade dos serviços, na variedade e abundância dos dons do Espírito. É provável que as “scholae cantorum” tenham surgido nesse período.
119. Durante a época patrística, cada ambiente eclesial cria e consolida um mundo celebrativo próprio, em sintonia com a cultura local, sempre aberto ao intercâmbio com as experiências mais diversas. É o triunfo do pluralismo litúrgico-musical, ainda aceito e respeitado pela Igreja de Roma.
120. Nesse pluralismo está o Oriente, com suas várias ramificações, e as diversas tradições do Ocidente, tais como: a africana (norte da África); a visigótica (Ibéria - Espanha); a galicana, conhecida por sua criatividade exuberante (Gália - França e adjacências); a céltica (Bretanha, País de Gales, Irlanda); as itálicas, bem características conforme as regiões (Campânia, Ravena, Aquiléia, Benevento, Milão e Roma). É no seio dessa diversidade de tradições que se estruturam os rituais dos Sacramentos, o Ofício Divino ou Liturgia das Horas, o Ano Litúrgico ou memorial anual do Mistério de Cristo, e florescem as várias formas do canto. No campo litúrgico-musical não podemos esquecer a influência determinante do dinamismo que resultou da expansão missionária e do florescimento monástico.
121. No entanto, com o passar do tempo, nota-se que algo essencial vai sendo deixado de lado: a participação e envolvimento da assembléia. Vai se aprimorando a especialização teológico-bíblica dos compiladores de textos, a gestualidade dos ministros, a afinação dos membros das “scholae”. Cultura e música elitistas passam a ocupar e dominar o espaço litúrgico. A música, aos poucos, vai se transformando em linguagem de doutos e peritos, em detrimento da participação do povo.
122. • Você sente a importância de voltar às fontes, à originalidade dos inícios de nossa experiência eclesial, litúrgica, musical?...
• Sua arte musical litúrgica e a de seu grupo se enraízam nessa tradição?
Vocês se sentem continuadores dessa tradição de quase dois mil anos?
• As “novidades” de hoje em dia carregam os traços originais, as motivações profundas, a mesma qualidade espiritual, o mesmo zelo pastoral que percebemos na experiência da Igreja dos primeiros séculos?
• Quais as lições dos inícios que importa reaprender, quais os valores originais que é necessário resgatar?...
2.2.4. A música litúrgica na Igreja da época romano-franca e romanogermânica
123. No que diz respeito ao canto litúrgico, o período que vai de Gregório Magno (+ 604) até Gregório VII (+1085) é período de complicadíssimas elaborações musicais. Gregório Magno dá toda a importância às “scholae cantorum”: estas se situam entre o presbitério e o povo (= ponte entre os fiéis e o sacerdote). Seus mestres são altamente especializados, e os cantores são preparados desde pequenos. Cantos antes executados por toda a assembléia passam a ser interpretados por elas. As melodias são ricas e complexas. Os fiéis escutam, se deleitam e se comovem: é um novo tipo de participação, a de ouvintes que com certeza se emocionam, mas, pelo resto, permanecem passivos. Único tipo de participação possível, quem sabe, nas condições culturais da época.
124. Tal situação da Igreja romana suscita admiração e imitação em toda a Igreja. Do século V ao VIII, a Igreja de Roma conheceu seu período de maior riqueza, de amadurecimento das formas expressivas, sua “época clássica”. Como conseqüência, se dá o processo de romanização das antigas liturgias locais.
125. Nesse contexto, surge uma arte de primeira qualidade, o canto gregoriano ou “canto chão”, monódico (em uníssono), próprio da liturgia latina. A hipótese mais recente sobre sua origem é que o canto gregoriano surgiu entre os séculos VIII e IX, com os monges da Francônia, derivado dos cantos do Antifonário que, a pedido de Carlos Magno, fora introduzido nos centros monásticos e catedrais do seu reino para a unificação da liturgia. O seu declínio teve início no século X, com a invenção dos primeiros sinais acústicos (neumas), para identificar a altura das melodias dos cantos litúrgicos. Os neumas são considerados os primeiros rudimentos da notação musical.
126. É importante frisar que, nesse período:
• O canto litúrgico se torna especialidade e competência exclusiva de clérigos e monges;
• O canto gregoriano expande-se, silenciando outras “vozes” (com exceção do canto ambrosiano);
• Com isso, não se quer desmerecer o valor intrínseco e inestimável do canto gregoriano. Os Papas o têm recomendado por causa da oportunidade que oferece à participação dos fiéis, da maneira pela qual as melodias ajudam à compreensão do texto, da discrição, da paz; por causa, enfim, da universalidade. De fato, trata-se de acervo artístico e espiritual de imenso valor, que não pode ser desperdiçado, mas que, por suas características peculiares, não poderia ser proposto incondicionalmente ao conjunto das comunidades cristãs hoje em dia.
2.2.5. A música litúrgica na época que vai de Gregório VII (+ 1085) ao Conc. de Trento (1545)
127. Se considerarmos globalmente o mundo da música na Igreja a partir do século XIII até os tempos mais recentes, deparamos duas situações:
• de um lado, uma Igreja-berço-e-protetora do progresso cultural-artístico;
• de outro, os temores, as lentidões, as posições tardias de uma gestão de poder que se sente ameaçada pelas transformações culturais e que reage em favor do conservadorismo e da tradição.
128. Surge o previsível: a liturgia vai entrando em crise cada vez mais grave e prolongada. Vasta documentação assinala a celebração em decadência, realizada mais por dever do que por vocação eclesial; mais pelo repertório a ser executado do que por inspiração; mais pela burocracia do culto do que pela ação coral do povo; mais pela dramaturgia do que pelo mistério participado...
129. Depois do gregoriano, surge a polifonia. Esta privilegia uma arte refinada, que mistura timbres, harmonias e ritmos. Neste período da história da música, surgem grandes nomes de mestres da composição e, conseqüentemente, emerge um repertório que atinge graus elevados de complexidade na escrita e de dificuldades técnicas na sua execução. É a época do equilíbrio vocal audacioso, regulado e controlado. Cronistas tradicionalistas da época se insurgem contra suas “execuções intoleráveis”.
130. Nessa situação, o povo busca iniciativas nas expressões, ritos marginais (procissões, peregrinações, bênçãos...) e celebrações que “tocam” o litúrgico, ricos em valores e em novos repertórios de canto em língua viva.
131. Mas o fim da Idade Média e a Renascença deram à música polifônica tal qualidade, que ela pôde ser empregada na liturgia e fornecer-lhe obras-primas graças à Escola romana e ao gênio de Palestrina (+1594). A Capela papal permaneceu fiel a esta música que os documentos da S. Sé chamam de “polifonia sagrada”, apesar das discussões sobre os prós e contras da polifonia que chegam até o Concílio de Trento.
2.2.6. A música litúrgica na época que vai do Concílio de Trento (1563) ao séc. XIX
132. Após o Concílio de Trento, surge o período artístico do Barroco: o sentimento de segurança nas declarações da Igreja romana dá a sensação de se pisar em solo firme, depois da crise protestante. Uma atmosfera de triunfo e de festa invade também o recinto e a expressão cultural. As igrejas parecem elegantes salões de atos com paredes de mármore e de ouro, pinturas nos tetos, onde não faltam os palcos e galerias. Surge o “coro”, uma tribuna separada do presbitério, no fundo da igreja: ele reflete a separação e a independência que a expressão musical adquiriu.
133. Não podemos negar o “casamento” da música barroca com a liturgia, nem suas coerências com a concepção de uma ordem monárquica e hierárquica exemplar: Deus, os chefes, os reis, o clero, o povo... Assim, nas igrejas, chefe do coro e organista poderão e deverão pontificar, mais do que o presidente da celebração. O órgão será o rei dos instrumentos e até concorrente do altar. A linguagem melódica terá tal eloqüência, que tornará acessível ao povo o próprio latim. O jogo alternativo, o contraste do timbre, o tecido feito de contrapontos, estarão em condições de expressar, mais do que um pregador, o sentido da festa!...
134. É o século de ouro da polifonia, mais estética do que litúrgica, em que se exibiam as qualidades artístico-musicais.
135. O repertório do barroco e, depois, do Classicismo alimenta a devoção, exalta a sensibilidade subjetiva e coletiva, mantém uma visão religiosa da realidade cristã, já que o “segredo dos mistérios” é inacessível para o povo.
136. Mas, já no século XVIII, sentia-se na Igreja um desejo de maior participação comunitária, de mais simplicidade. O descontentamento era geral. Um Sínodo, acontecido em Pistóia (1786), assinala algumas reformas a ser feitas: maior participação dos fiéis, música mais simples e adaptada ao sentido das palavras. Tais mudanças, porém, não se concretizaram!
137. No século XIX, prevalecerá a oposição contra a música profana e o estilo teatral, oriundos do barroco. A reforma da música sacra foi um dos objetivos prioritários desse século. Busca-se uma restauração do gregoriano autêntico, fruto do trabalho dos monges de Solesmes, sob o comando de D. Guéranger. Gregoriano e Polifonia são absolutizados como formas-modelo, fontes de inspiração, único patrimônio digno de ser atingido como genuína riqueza.
2.2.7. A música litúrgica em pleno Movimento Litúrgico
138. Foi no século XIX que surgiu, na abadia beneditina de Solesmes, na França, sob a liderança espiritual de Dom Guéranger (1805-1875), um movimento de retorno às fontes e de retomada do fervor litúrgico, que veio a desaguar, um século mais adiante, no Concílio Vaticano II. Foi o Movimento Litúrgico.
139. Bebendo nas mesmas fontes e caminhando de mãos dadas juntamente com o Movimento Bíblico e o Movimento Ecumênico, o Movimento Litúrgico se espalhou pela Europa e, depois da 2ª Guerra Mundial, seu raio de influência e inspiração chegava a quase todos os países do mundo, sobretudo com o Motu Proprio "Tra le sollicitudine" de São Pio X (1903), que motivou as inovadoras e preciosas diretrizes do papa Pio XII, em suas encíclicas “Mediator Dei” (1947) e “Musicae Sacrae” (1955). Todas estas propostas de reforma tinham em vista favorecer a participação “ativa e consciente” do povo na liturgia: uma antecipação do Vaticano II.
140. Os Diretórios diocesanos, as comissões diocesanas e nacionais de Liturgia e Música Sacra foram-se multiplicando. Os missionários ocupavam-se com especial cuidado da vida litúrgica nas missões. “Semanas”, congressos, simpósios difundiam por toda a parte esse ar de renovação, divulgando as diretrizes, a produção intelectual dos liturgistas, as experiências de pastoral litúrgica, nas quais a música, o canto especialmente, tinham importante lugar.
2.2.8. A música litúrgica na Igreja de hoje
141. Quinze séculos depois de Agostinho, no Concílio Vaticano II, qual culminância do arrojado movimento de volta às fontes a que acima nos referimos, vamos deparar o primeiro dos documentos conciliares, precisamente a Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, se afirma com evidente empolgação: A tradição musical da Igreja é um tesouro de inestimável valor, que excede todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, intimamente unido com o texto, constitui parte necessária ou integrante da Liturgia solene.
142. O canto sacro foi enaltecido quer pela Sagrada Escritura (cf. Ef 5,19; Cl 3,16), quer pelos Santos Padres e pelos Romanos Pontífices, que recentemente, a começar por São Pio X, definiram, com insistência, a função ministerial da Música Sacra no culto divino (...). Os atos litúrgicos revestem-se de formas mais elevadas quando os ofícios, aos quais assistem os ministros sacros e nos quais o povo participa ativamente, são celebrados com canto.
143. Quatro anos mais tarde, a Instrução da Sé Romana Musicam Sacram, de 1967, levando em consideração as diretrizes conciliares e fazendo eco à mais antiga tradição, assim se expressa: A ação litúrgica reveste uma forma mais nobre quando é realizada com canto, cada ministro exercendo a função que lhe é própria, e o povo participando. Sob esta forma, com efeito, a prece se exprime de maneira mais penetrante; o mistério da liturgia, com suas características hierárquica e comunitária, se manifesta de maneira mais explícita; a unidade dos corações é mais facilmente atingida pela união das vozes; os espíritos se elevam mais facilmente da beleza das coisas santas até as realidades invisíveis; enfim, a celebração como um todo prefigura mais claramente a liturgia celeste, que se realiza na nova Jerusalém.
144. A partir do Concílio, algumas intuições e critérios vão inspirando e provocando providencialmente toda uma renovação da música litúrgica:
• Liturgia é a celebração do Mistério Pascal realizada pelo Povo de Deus: a participação das pessoas, da assembléia, como exercício do novo sacerdócio, com Cristo, por Cristo e em Cristo, é de fundamental importância e constitui valor primordial;
• Canto e música, antes de ser obras codificadas para execução, são gesto vivo, experiência existencial; são vivência simbólica “aqui e agora”, antes de ser repertório ao qual as pessoas devam se adaptar;
• Canto e música participam da dimensão sacramental da liturgia: são símbolos importantes do Mistério de Cristo e da Igreja, e não ornamento exterior; são encarnação, em estruturas comunicativas, da Palavra, do diálogo salvífico entre as Pessoas Divinas e as pessoas humanas, e não elementos rituais e estéticos de uma religiosidade qualquer;
• Canto e música, no contexto da ação litúrgica, não são realidades autônomas, mas funcionais: estão aí a serviço do Mistério da Fé, da assembléia sacerdotal. Artistas e demais atores se empenharão em encontrar a expressão musical mais bela e adequada, levando em conta o rito e as pessoas que vão executá-lo. O que deve prevalecer não são os gostos, a estética individual de cada um, mas a essencialidade do Mistério e a participação frutuosa e prazerosa de todos. Os agentes litúrgico-musicais desempenharão tanto melhor o seu papel, quanto melhores intérpretes forem da fé, da vida e do jeito de ser da sua gente;
• Canto e música, partindo de bases antropológicas e do universo cultural de quem crê, devem possibilitar a expressão verdadeira da assembléia, bem como a autenticidade de sua participação. A beleza das formas é necessária, mas não é mensurável unicamente a partir de normas jurídicas ou estéticas;
• Os repertórios do passado e as novas criações não devem ser vistos como bens culturais, ostentados para dar prestígio à instituição ou embelezar suas cerimônias, mas como subsídios simbólicos a ser aproveitados por comunidades concretas, de forma realmente significativa e participativa.
145. Após experiências desnorteadas e até aberrantes, de um lado, e reacionárias ou repressoras, do outro, vamos chegando a uma realidade musical diferente, equilibrada, rica e promissora. Mas é muito importante que todo o Povo de Deus se sinta chamado a fazer florescer, na vida e na celebração, toda a riqueza de ministérios e carismas que o Espírito suscita, de modo que possa expressar pelo canto a sua identidade, celebrar a sua esperança, ancorado na mesma fé exemplar de Maria, podendo alegrar-se com ela, por ver desmoronar os tronos dos privilégios e das barreiras étnicas e culturais, porque todo ser humano e toda linguagem são chamados ao louvor.
146. O canto novo deve brotar de comunidades evangelicamente novas, eclesialmente abertas, culturalmente contemporâneas. Não devemos esconder, porém, quanto é longo, duro e não sem quedas e desânimos o caminho dessa novidade.
147. Diante desta visão panorâmica da música na Igreja, desde os tempos apostólicos até nossos dias, podemos perceber que houve momentos gloriosos e outros mais penosos. No entanto, com seu canto e sua música, a Igreja “fez-se judia com os judeus, grega com os gregos”; seu “canto novo” se deixou influenciar por melodias simples, como também soube preencher com o sopro do Espírito os tubos dos órgãos e fazer vibrar as cordas com sinfonias magníficas, que serão para sempre, em termos de arte e de fé, glória da humanidade e da própria Igreja.
148. • A História continua sendo “mestra de vida”... Percorrendo a história da Música Litúrgica, nem que seja nos seus lances mais gerais, o que aproveitar para o exercício do nosso ministério musical hoje, em nossa terra?...
2.2.9. A música litúrgica nos documentos da Igreja Católica latinoamericana
149. Reunidos sucessivas vezes, respectivamente no Rio de Janeiro, Brasil (1955), em Medellín, Colômbia (1968), Puebla de los Ángeles, México (1979) e Santo Domingo, República Dominicana (1992), os representantes do episcopado latinoamericano pouco se ocuparam deste assunto, apesar da importância que o canto e a música têm na vida de nossos povos e particularmente em nossa prática celebrativa, das manifestações religiosas populares às celebrações oficiais de nossas Igrejas. No entanto, vale a pena retomar o pouco que aí se afirma ou sugere:
• A Igreja latino-americana deve dar aos artistas e homens de letras o seu devido lugar, recorrendo a seu concurso para a expressão estética da palavra litúrgica, da música sacra e dos lugares de culto;
• A coincidência de problemas comuns e a necessidade de contar com grupos de peritos devidamente preparados aconselham o incremento dos serviços que o Departamento de Liturgia do CELAM pode proporcionar;
• Uma seção de coordenação dos musicólogos, artistas e compositores para unir os esforços que se estão realizando em nossas nações, com o fim de proporcionar uma música digna dos sagrados mistérios;
• Promover a música sacra, como serviço eminente que corresponde à índole de nossos povos.
150. O mérito dessas assembléias episcopais latino-americanas foi, sobretudo, criar e relançar, a cada 10 anos, um espírito novo, progressivamente, de resgate da força libertadora do Evangelho, de compromisso com o oprimido e excluído e de fidelidade às raízes culturais de nossos povos, espírito este que vai inspirando o conjunto das atividades da Igreja no continente, e, portanto, sua liturgia e a própria música litúrgica.
2.2.10. A música litúrgica nos documentos da CNBB
151. Mais explícita a respeito da música litúrgica tem sido a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que já em 1976 publicava importante documento sobre a Pastoral da Música Litúrgica no Brasil, pronunciando-se com segurança, profundidade e senso prático sobre questões de fundo e preocupações maiores do momento pós-conciliar. Referindo-se à participação dos fiéis na liturgia, aí se afirma:
Uma das melhores expressões desta participação é a Música litúrgica. Onde há manifestação de vida comunitária existe canto; e onde há canto celebra-se a vida. Por isso, no Brasil, a renovação litúrgica tem alcançado um de seus pontos mais positivos, pela criação de uma música litúrgica em vernáculo. Esta tem procurado corresponder ao sentimento e à alma orante do nosso povo, fazendo-o participar das funções litúrgicas de modo expressivo e autêntico (...).
152. O canto, como “parte necessária e integrante da liturgia” (SC 112), por exigência de autenticidade, deve ser a expressão da fé e da vida cristã de cada assembléia. Em ordem de importância é, após a comunhão sacramental, o elemento que melhor colabora para a verdadeira participação pedida pelo Concílio (...).
153. O canto, portanto, não é algo de secundário ou lateral na liturgia, mas é uma das expressões mais profundas e autênticas da própria liturgia e possibilita ao mesmo tempo uma participação pessoal e comunitária dos fiéis (...).
154. Se a música for como de fato requer a liturgia, será sinal que nos leva do visível ao invisível, um carisma que contribui para a edificação de toda a comunidade e a manifestação do mistério da Igreja, Corpo Místico de Cristo.
155. Treze anos mais tarde, no Doc. 43, sobre a “animação da vida litúrgica no Brasil”, insistem nossos pastores:
Auxilia nossa prece, reforçando a palavra que ouvimos, a linguagem universal da música, cantada ou instrumental (...).
156. • Dos princípios e diretrizes emitidos pelos Bispos da América Latina, e, sobretudo, pela CNBB, o que mais interessa a você, no desempenho de seu ministério musical?... O que mais o questiona e desafia?...
• Em que a gente precisa mais avançar?...
Nenhum comentário:
Postar um comentário