por Xabier Basurko ([1])
Em síntese: O autor começa mostrando a valorização do canto e da música em geral entre os povos pagãos. O cristianismo professa também esse valor, depurando-o, porém, das conotações erotizantes da praxe pagã. O canto sacro foi altamente conceituado por toda a Tradição cristã, que chegou a ver nele uma antecipação do júbilo final. "Veremos (a Deus)... Amaremos... e Louvaremos" (S. Agostinho).
Xabier Basurko nasceu em San Sebastian (Espanha). Doutorou-se em Roma na área de Teologia com especialização em Liturgia. Entrega ao público um valioso livro, que põe em relevo a estima dos antigos escritores cristãos pelo canto sacro. Dada a importância dessa obra, procuraremos percorrê-la salientando os seus tópicos mais significativos.
1. No mundo grego pré-cristão
A valorização do canto professada pelos filósofos gregos passou para o povo simples através da mitologia, da qual vão abaixo reproduzidos alguns espécimes.
"Clemente de Alexandria e Eusébio de Cesaréia referir-se-ão à lenda de Orfeu, que, com a virtude mágica do seu canto, acompanhado com a lira, domestica animais selvagens. Metódio de Olimpo começa sua obra deAutevusio relatando-nos a fábula de Ulisses, cativado pelo canto das sereias, o qual leva a morte aos seus ouvintes" (p. 55).
Os escritores da Igreja não receberam esses e outros relatos míticos de maneira passiva e complacente, mas procuraram servir-se deles para exprimir a mensagem do Evangelho. Um dos sinais mais utilizados pelos escritores cristãos para ilustrar a pessoa de Cristo é a figura de Orfeu: vêem no poder mágico de Orfeu um aceno à ação salvífica do Verbo feito carne. Assim escreve Clemente de Alexandria (+211 aproximadamente): "O Salvador não tem mais do que uma voz, uma forma de salvar os homens... Chama-os pelo som da sua lira" (Protreptikós 4, 1-4).
2. O confronto
A cristianização das expressões do mundo pagão foi árdua, pois, de um lado, havia a sóbria austeridade do Evangelho e, de outro lado, o destempero pagão. São João Crisóstomo (+407) é testemunha do conflito existente mesmo após a Paz de Milão (313).
"Danças, coros, cantos pagãos, palavras desonestas, excessos e orgias de todo tipo, seduções diabólicas de todo gênero... dai-vos conta daquilo de que se compõem essas festanças. Já sei a que me exponho com estas palavras: serei tratado como ridículo, serei tido como insensato porque fustigo costumes antigos, a tal ponto o hábito pode perverter as idéias. Não importa, serei lógico até o fim" (Homilia sobre 1Cor 12, 5).
Vários escritores cristãos chegavam a admitir a influência do demônio nos espetáculos pagãos. Eis como se manifesta a respeito Teodoro de Mopsuéstia (+428):
"Em seguida, tu dizes: 'Renuncio a todos os extravios mundanos'. O que se denomina como extravios mundanos são o teatro, o circo, o estádio, os combates de atletas, os cantos, os órgãos hidráulicos, as danças, tudo isto que o diabo semeia neste mundo, a fim de conduzir a alma dos homens à sua perdição, sob a aparência de diversões. Pois não é difícil compreender quanto perigo para o espírito humano está contido nessas coisas" (p. 128).
Finalmente prevaleceu o uso do canto cristão sob o impulso do Espírito Santo. Mas até mesmo no âmbito da Igreja havia quem recorresse à força persuasiva do canto para disseminar heresias. É o que refere Xabier Basurko à p. 135 do seu livro:
"Não foi unicamente o perigo dos cantos pagãos que o cristianismo teve de superar. Os hereges, que pulularam na Igreja desde seu início, usaram o canto não somente para seu próprio culto, mas também para propagar suas idéias heréticas; nos valores psicológicos do canto eles descobriram um ótimo meio para infiltrar suas heresias até nas próprias assembléias cristãs.
Segundo o testemunho do fragmento de Muratori, já no século segundo o herege Marcião havia colocado em circulação um livro de salmos compostos por ele mesmo.
Um texto de Tertuliano parece indicar-nos que também o herege Valentim deve ter composto seus próprios cantos, à imitação dos salmos de Davi, que se usavam comumente no culto cristão.
Eusébio de Cesaréia fala, em sua História Eclesiástica, do herege Paulo de Samósata que, tendo proibido os salmos em honra de Jesus Cristo, fez um coro de mulheres cantar seus próprios cantos no meio da igreja no grande dia da Páscoa".
3. Homem novo e Cântico novo
A vitória do Cristianismo deve produzir um Homem novo com um cântico novo, como nota Xabier Basurko à p. 197 do livro em foco.
"A vida cristã é uma contínua luta por destruir em nós mesmos o homem velho e por renovar-nos dia a dia. Desta forma, subsistem ainda em nossa vida o Cântico Novo e o Cântico Velho. Assim o explica Santo Agostinho:
“Já renovados pela fé, quantas coisas velhas não fazemos ainda! Não estamos vestidos de Cristo a ponto de não termos nada de Adão. Procurai fazer Adão envelhecer em vós e transplantar Cristo, pois o apóstolo assim diz: 'O homem exterior se destrói, mas o interior se renova dia a dia' (2Cor 4, 16). Logo, vejamos aqui o homem velho, o velho dia, o velho cântico e o Antigo Testamento, considerando os pecados, a mortalidade, a fugacidade do tempo, o gemido, o trabalho e o suor, as épocas sucessivas da idade do homem, que não permaneceram desde a infância até à velhice e que passam sem ser percebidas. Dirijamo-nos ao interior, às coisas que devem renovar-se em favor das que não mudam, e encontraremos o homem novo, o novo dia, o cântico novo e o Novo Testamento, e amemos de tal modo esta novidade que não tenhamos nela a velhice'".
O homem novo, que se espalha por toda a terra, associa-se ao coro dos anjos na execução do cântico novo.
"O ideal do culto da terra é reproduzir com maior perfeição e fidelidade o culto celeste dos anjos. Os Padres dirão com freqüência que o canto da assembléia cristã é uma imitação, na terra, do ofício dos anjos. O canto dos salmos será designado como ofício angélico, 'angelorum ministerium'. O canto cristão a uma só voz procura reproduzir na terra o canto uníssono, o 'una voce dicentes' dos anjos" (p. 207).
"É um pensamento comum nos Padres que a finalidade do homem na vida celeste será o louvor contínuo a Deus juntamente com os coros dos anjos.
Então o homem será igual aos anjos, pois, como diz Santo Atanásio, aqueles que realizam um mesmo ofício devem ter também a mesma dignidade, e o homem - assim se diz - realizará, como os anjos e em companhia deles, um louvor perfeito e contínuo.
A imagem MUSICAl dos címbalos, que ressoam no momento em que se juntam, serviu a Gregório de Nissa para expressara idéia da união do homem com o mundo angélico:
Um dos címbalos é a natureza celeste dos anjos; o outro címbalo é a criatura racional humana. O pecado separou um do outro, e, quando a misericórdia de Deus os juntar de novo, ressoará um hino... Assim estes címbalos cantarão o epinício ou hino de vitória, pela mútua concórdia, depois de ter vencido e superado o adversário. Expulso e aniquilado este, todos os espíritos, com um mesmo fervor e entusiasmo, farão ressoar diante de Deus o hino de louvor por toda a eternidade.
Homens e anjos formarão então como que uma só cidade e um só povo às ordens de uma só cabeça e chefe, Cristo" (p. 215).
São estes alguns traços que revelam a importância de um livro que merece ser lido por quem deseje conhecer melhor o Cristianismo.
Dom Estêvão Bettencourt (OSB)
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