AINDA UMA VEZ, FAZ BEM VOLTAR ÀS RAZÕES DO NOSSO CANTAR
Uma razão teológica: celebrar a ação de Deus em nossa vida
347. O canto litúrgico expressa de modo eminente a natureza própria da ação sacramental da Igreja. A liturgia cristã é celebração da Ação eficaz do Deus Uno e Trino na vida da Igreja e dos fiéis, conformando-os cada vez mais intimamente a Cristo e inserindo-os na comunhão da Trindade pela força do Espírito. A esta ação de Deus, simbolizada nos sinais sacramentais, corresponde uma resposta generosa e confiante da Igreja pela congregação dos fiéis numa assembléia de culto, louvor e ação de graças.
348. A expressão litúrgica é encarregada de introduzir no mistério de Deus e desvelar as experiências mais profundas e inefáveis do coração humano: necessidade de transcendência, comunhão, fé e alegria, e a superação dos limites da nossa condição de criaturas, como o sofrimento, a dor e a morte. Essas experiências necessitam não só de palavras estruturadas em conteúdos racionais e doutrinais para se expressarem convenientemente, mas de ritos, gestos e símbolos. Neste contexto, a expressão artística é a mais apropriada forma de expressão, e a música e o canto ocupam lugar privilegiado, senão ímpar, porque a arte carrega capacidade expressiva e mobilizadora muito acima do “logos” (palavra).
349. Deus, que se manifesta a nós como Mistério Santo, inebria de tal forma a nossa experiência e o nosso conhecimento, que as palavras nunca serão suficientes para explicá-lo. No cerne desta infância espiritual, o balbucio, o canto, a música e a dança são meios extraordinários de estabelecer uma comunhão com Deus. O texto poético de prece, súplica, ação de graças e louvor, aliado a uma melodia que ressoa na profundidade do coração humano, eleva os corações e produz por si mesmo um encontro que vai além da mera emoção estética. Daí o seu caráter particularmente simbólico e sacramental.
Uma razão cristológica: celebrar o Mistério Pascal do Senhor
350. O canto litúrgico brota do fato fundante da fé cristã: o Mistério Pascal do Senhor. Assim como o culto do Antigo Testamento estava centralizado no Êxodo e na Aliança como ação de graças e compromisso, da mesma forma o culto no Novo Testamento é memória viva da Páscoa de Jesus. Dessa origem do canto cristão brotam características como a dimensão pascal da vida e do cantar, em que a última palavra é a ressurreição e a vida plena. É, portanto, um canto marcadamente esperançoso.
351. A tônica principal do canto litúrgico é e será sempre a alegria escatológica. A festa no Senhor Ressuscitado produz a essência do nosso cantar. A liturgia cristã, na dor do pecado, celebra a alegria do perdão e da misericórdia divina; nas rupturas dolorosas, como a morte, celebra a esperança da vida; na realidade dura de uma comunidade cristã desigual e marcada por dilacerações internas e externas, celebra a fé na Igreja ligada indissoluvelmente ao Senhor como o corpo à sua cabeça. Este mesmo Senhor conduz a Igreja para a unidade. Não fugimos da realidade dura do dia-a-dia, que comporta denúncias proféticas nas nossas celebrações, mas nunca desesperançados e caídos, e sim erguidos na dignidade de filhos, redimidos em Cristo.
Uma razão pneumatológica: cantar no Espírito
352. A oração cristã, que tem sua expressão mais suave, mais bela e mais envolvente no canto litúrgico, não é somente oração para Deus, mas em Deus. O cantar em Deus qualifica o nosso canto e a nossa celebração como um canto entusiasmado (en -Theous). Os apóstolos, na manhã de Pentecostes, pareciam bêbados porque estavam entusiasmados = cheios do Espírito Santo. A assembléia que canta no Espírito faz ressoar um canto que é verdadeiro clamor que brota do fundo da alma, cheio de fervor, de alegria no Espírito, como diz o Apóstolo.
353. Cantar dessa forma é realizar o ideal permanente da oração cristã, que significa este contato e esta imersão no Mistério de Deus. Desta forma, provoca-se conversão e mudança de vida nos membros da assembléia orante, e ela se torna sinal fecundo e eficaz da graça de Deus para o mundo. Há casos famosos na história do cristianismo em que, pelo testemunho de entusiasmo e de alegria dos fiéis que cantam, homens e mulheres são despertados vivamente para a vida eclesial.
Uma razão eclesiológica: cantar em comunidade
354. Acima de tudo, o canto é atividade essencialmente comunitária. A expressão musical só se realiza plenamente no contexto de uma comunidade. A comunidade faz o cantar, e o cantar faz a comunidade. A Igreja expressa, maravilhosamente bem, a sua realidade de comunhão e participação através do canto comunitário. Não há reunião, festa, congresso algum, de qualquer natureza, esportiva, cultural, religiosa, civil e militar, que não ponha no canto, nos hinos, a sua esperança de coesão interna e de afervoramento em relação aos objetivos e propósitos que quer alcançar. A participação comunitária não se dá só diretamente cantando, mas ouvindo e apreciando: deixando-se envolver pela beleza da música.
355. No caso da Igreja, o canto não possui só uma função catártica (de alívio, purificação...), catalisadora (de estímulo, de dinamismo, de incentivo...) e motivadora, mas é sacramento, é simbolismo, isto é: o canto é um dos elementos que compõem a visibilidade, a corporeidade do simbolismo sacramental. Através deste sinal sensível, a Palavra cantada é veículo do encontro de Deus conosco e dos fiéis em Cristo entre si.
Nenhum comentário:
Postar um comentário