A formação do músico católico é fundamental e a pedra principal é sua obediência e concordância litúrgica.
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domingo, 17 de agosto de 2014

LITURGIA E MÚSICA SACRA

Conferência proferida na abertura do VIII Congresso de Música Sacra, em Roma, 17 Novembro de 1985.

Entre a liturgia e a música existiu desde o início uma relação fraterna. Quando o homem louva Deus, a palavra sozinha é insuficiente. A palavra dirigida a Deus transcende os limites da linguagem humana. Por esse motivo tal palavra, em todos os tempos, precisamente devido à sua natureza, invocou o auxílio da música, do canto e da voz da criação no som dos instrumentos. De fato, nem só o homem participa no louvor de Deus. A liturgia, como serviço divino, é o inserir-se nisto de que falam todas as coisas.

Porquanto a liturgia e a música, devido à sua natureza, estejam intimamente ligadas entre si, o seu relacionamento foi sempre difícil, sobretudo nos momentos nodais de transição na história e na cultura.

Não é, pois, admiração nenhuma que também hoje seja de novo posto em discussão o problema da forma adequada de música na celebração litúrgica. Nos debates do Concílio, e logo a seguir, parecia que se tratava simplesmente de divergência entre pessoas dedicadas à prática pastoral, por um lado, e músicos da igreja, por outro. Estes não queriam deixar-se coarctar por uma formalidade puramente pastoral, enquanto se esforçavam por afirmar a dignidade intrínseca da música como medida de valor pastoral e litúrgico próprio. Tinha-se, pois, a impressão que o conflito respeitava sobretudo o âmbito do uso da música. Entretanto, porém, a rotura aprofundou-se. A segunda vaga da reforma litúrgica radicalizou o problema até aos seus fundamentos. Trata-se agora da natureza da ação litúrgica como tal, das suas bases antropológicas e teológicas. O conflito que atinge a música sacra é sintomático e descobre um problema mais profundo, a saber: o que é a liturgia.

1. SUPERAR O CONCÍLIO?

Uma nova concepção da liturgia.

A nova fase em que se afirma a vontade de uma reforma litúrgica considera explicitamente como seu fundamento não já as palavras do Concílio Vaticano II, mas sim o seu «espírito». Utilizo como texto paradigmático o artigo bem informado e coerente do Nuovo Dizionario di Liturgia sobre «Canto e música na Igreja». Aqui não se põe em causa de modo nenhum o alto valor artístico do canto gregoriano ou da polifonia clássica. E nem sequer se trata de contrapor a atividade da assembleia a uma arte de elite. O nó da discussão não é tão pouco a recusa de um fixismo histórico que se limitasse a copiar o passado e que por isso mesmo ficasse sem presente e sem futuro. Trata-se antes de uma nova concepção de fundo da liturgia, com que se pretende superar o Concílio, cuja Constituição litúrgica teria incluído «duas almas» (p. 211 a, cf. 212 a).

Liturgia de grupo ou liturgia da Igreja?

Procuremos brevemente conhecer esta concepção nas suas linhas mestras. O ponto de partida da liturgia — assim se diz — é o reunir-se de duas ou três pessoas que estão juntas em nome de Cristo (199 a).

Esta referência à palavra do Senhor (Mt. 18, 20) parece à primeira vista inócua e tradicional. Mas tal palavra adquire um alcance revolucionário pelo facto da citação bíblica ser tirada do seu contexto e ser posta em realce por contraste com o fundo de toda a tradição litúrgica. Porque os «dois ou três» são agora postos em oposição a uma instituição com papéis institucionalizados e em confronto com qualquer «programa codificado». Assim tal definição significa o seguinte: Não é a Igreja que precede o grupo, mas sim o grupo que precede a Igreja. Não é a Igreja no seu conjunto a fazer de suporte à liturgia dos diversos grupos e comunidades, mas sim o próprio grupo é o lugar onde de cada vez nasce a liturgia. A liturgia, por isso, não se desenvolve nem sequer a partir de um modelo comum, de um «rito» (reduzido, enquanto «programa codificado», à imagem negativa da falta de liberdade); a liturgia nasce no momento e no lugar concreto, graças à criatividade de quantos se reúnem. Em tal linguagem sociológica o sacramento do sacerdócio é considerado uma função institucionalizada que, obteve um monopólio (206) e que, graças à instituição (isto é, à Igreja) dissolveu a unidade primitiva e a comunitariedade dos grupos.

Neste contexto a música, assim se diz, tal como o latim, transformaram-se numa linguagem de iniciados, na «língua de uma outra Igreja, quer dizer, da instituição e do seu clero».

O ter isolado a passagem de Mt 18, 20 de toda a tradição bíblica e eclesial da oração comum da Igreja mostra agora, como se vê, consequências graves: a partir da promessa que o Senhor fez a todos os que rezam em qualquer lugar, fez-se uma dogmatização dos grupos autónomos.

A igualdade na oração foi de tal forma exasperada que se transformou num nivelamento que considera o desenvolvimento do ministério sacerdotal o surgir de uma outra Igreja. Deste ponto de vista toda a proposta que venha da Igreja universal é julgada como uma cadeia contra a qual há que insurgir por amor à novidade e liberdade da celebração litúrgica. Não é a obediência perante um todo, mas sim a criatividade do momento que se torna a forma determinante.

Uma «nova música» para uma «nova Igreja»?

É evidente que juntamente com a adopção de uma linguagem sociológica se fez também a assunção de valores: a hierarquia dos valores que deu forma à linguagem sociológica constrói uma nova visão da história e do presente. Assim alguns conceitos usuais (ainda por cima também conciliares!) — como «o grande patrimônio da música sacra», «o órgão rei dos instrumentos», «a universalidade do canto gregoriano» — são timbrados como «mistificações» usadas a fim de «conservar uma determinada forma de poder e de visão ideológica» (p. 200 a). Um certo modo de administrar o poder (assim se diz) sente-se ameaçado pelos processos de transformação cultural e «reage até mascarar como amor à tradição o desejo de autoconservação» (p. 205 n). O canto gregoriano e Palestrina seriam os «numes tutelares» de um antigo repertório mitificado (210 b), elementos de uma «contracultura católica» que neles se apoia como «arquétipos remitificados e super-sacralizados» (208 a), como aliás à liturgia histórica está mais a peito a representação de uma burocracia do culto do que a ação coral de um povo (206 a). O conteúdo do “Motu próprio” de Pio X sobre a música sacra é, finalmente, considerado «uma ideologia culturalmente míope e teologicamente presunçosa de uma ‘música sacra’» (211 a). Aqui, evidentemente, já não é só o sociologismo que se faz sentir, mas estamos perante uma total separação entre o Novo Testamento e a história da Igreja, que se une a uma teoria da decadência característica de muitas situações iluministas: as realidades no seu estado puro encontram-se somente nos inícios primordiais de Jesus; todo o resto da história aparece como uma «velha aventura musical, com experiências desorientadas e enlouquecidas», que agora deve «ser encerrada» para retomar finalmente a via correta (212 a).

Espontaneidade musical do grupo ou música da Igreja?

Mas como se configura esta realidade nova e melhor? Os princípios base já foram precedentemente acenados; agora devemos prestar atenção à sua concretização particular. São formulados de modo claro dois valores de fundo. O «valor primário» de uma liturgia renovada, como se diz, seria «o agir das pessoas (todas) em plenitude e autenticidade» (211 b). Consequentemente a música de igreja significaria em primeiro lugar que o «povo de Deus» representa a sua identidade cantando.

Com isto é também já posto em causa o segundo critério de valor que aqui é ativo: a música é a força que opera a coesão do grupo (217).

Os cantos familiares a uma comunidade tornam-se, por assim dizer, o seu distintivo. Destas premissas brotam as categorias principais da estruturação musical da liturgia: o projeto, o programa, a animação, a direção. Mais importante do que «o quê» (assim se diz) seria «o como» (217). Ser capaz de celebrar seria sobretudo ser capaz de «fazer». 

música deveria sobretudo «ser feita»… Para não ser injusto, devo acrescentar que no artigo em questão se mostra todavia compreensão para as diversas situações culturais e que fica também espaço aberto para assumir o património histórico. É sobretudo sublinhado o caráter pascal da liturgia cristã cujo canto não só representa a identidade do povo de Deus, mas deveria também afirmar a esperança e anunciar a todos o rosto do Pai de Jesus Cristo.

Permanecem assim elementos de continuidade na grande ruptura: estes permitem o diálogo e infundem a esperança de que se possa reencontrar a unidade na compreensão basilar da liturgia que, todavia, ameaça desaparecer, quando se faz derivar a liturgia do grupo e não da Igreja — não só no plano teórico, mas também na prática litúrgica concreta.

Não me alongaria tanto sobre este texto publicado num dicionário prestigioso se pensasse que tais ideias são atribuíveis unicamente a alguns teóricos individuais. Ainda que não haja dúvida nenhuma de que eles não se podem apoiar em nenhum texto do Vaticano II, em alguns serviços e órgãos litúrgicos consolidou-se a ideia de que o espírito do Concílio orientaria em tal direção. Uma opinião demasiado difundida sugere hoje as concepções acabadas de expor, a saber, que as categorias próprias da compreensão conciliar da liturgia sejam precisamente a assim chamada criatividade, o agir de todos os presentes e a referência a um grupo de pessoas que se conhecem e interpelam reciprocamente. Não só jovens padres, mas por vezes também bispos têm a sensação de não serem fiéis ao Concílio se rezam tudo tal como vem no Missal. Deve haver ao menos uma fórmula «criativa», por mais banal que seja. E a saudação «civil» dos presentes, possivelmente também as cordiais saudações à despedida, tornaram-se já partes obrigatórias da ação sagrada a que quase ninguém ousa subtrair-se.

2. O FUNDAMENTO FILOSÓFICO DO CONCEITO E O SEU QUESTIONAMENTO

Uma liturgia (e uma música) anti-institucional?

Com tudo isto ainda não se tocou o núcleo do problema, isto é, da mudança de valor. Tudo quanto disse deriva do ter anteposto o grupo à Igreja. Mas porque razão isso veio a acontecer? O motivo está no fato de se ter assumido a Igreja no conceito genérico de «instituição» e de o termo «instituição», no tipo de sociologia aqui adotado, comportar uma qualidade negativa. Ela incarna o poder e o poder é o contrário da liberdade. Dado que a fé (o seguimento de Jesus) é concebida como  valor positivo, deve estar da parte da liberdade e por sua natureza deve ser, portanto, também anti-institucional. Por conseguinte também a liturgia não pode ser um suporte ou uma parte da instituição; deve, pelo contrário, constituir uma força que ajude a derrubar os poderosos do seu trono. A esperança pascal, de que a liturgia deve dar testemunho, desenvolvendo-se desde este ponto de partida, pode tornar-se muito terrena. Ela torna-se esperança na superação das instituições e torna-se mesmo forma de luta contra o poder. Quem conheça a “Missa Nicaraguensis”, mesmo só por lhe ter lido o textos, pode fazer uma ideia deste desvio da esperança e do realismo que a liturgia adquire aqui enquanto instrumento de uma promessa militante. Pode ver-se também qual o significado e a importância que se atribui à música na nova concepção. A força de choque dos cantos revolucionários comunica um entusiasmo e uma convicção que não poderiam derivar de uma liturgia simplesmente recitada. Aqui já não há nenhuma oposição à música litúrgica. Ela alcançou um novo papel insubstituível no despertar das energias irracionais e do dinamismo comunitário a que tudo tende.

Mas igualmente a música é formação das consciências, porque a palavra cantada se comunica de modo progressivo e muito mais eficaz ao espírito do que a palavra lida ou só pensada. De resto, no caminho que leva às liturgias de grupo, intencionalmente se supera o limite da comunidade local: graças à forma litúrgica e à sua música constitui-se

uma nova solidariedade, por meio da qual deve formar-se um novo povo, que se auto define povo de Deus, enquanto que, de facto, por Deus se entende a si próprio e às energias históricas que em si se desenvolveram.

Liturgia e música de «libertação»?

Voltemos agora à análise dos valores que se tornaram determinantes na nova consciência litúrgica. Trata-se, por um lado, da qualidade negativa do conceito de instituição e da consideração da Igreja exclusivamente sob este aspecto sociológico, ainda por cima não na ótica de uma sociologia empírica, mas de um ponto de vista que deriva dos chamados mestres da suspeição. Vê-se que realizaram a sua obra de modo muito eficaz. Conseguiram, de fato, uma determinação das consciências que é ativa mesmo onde nada se sabe desta origem. A suspeição, aliás, não teria podido ter uma tal força incendiária, se não fosse acompanhada por uma promessa, cujo fascínio é quase inevitável: a ideia da liberdade como direito autêntico da dignidade do homem. Sob este aspecto, o núcleo da discussão deve ser a pergunta: Qual é o verdadeiro conceito da liberdade? Com isto o debate sobre a liturgia é reconduzido ao seu ponto essencial, uma vez que na liturgia, na verdade, se trata da presença da salvação, do apontar para a verdadeira liberdade. Ter posto em evidência o núcleo da questão é, sem dúvida, o elemento positivo da nova disputa.

Liturgia sem a Igreja é em si uma contradição

Contemporaneamente manifestou-se aquilo que hoje constitui o verdadeiro mal-estar dos cristãos católicos. Se a Igreja aparece agora somente como instituição, como detentora do poder e, por isso, como contraparte da liberdade, como impedimento da salvação, então a fé contradiz-se a si mesma; porque por um lado não pode prescindir da

Igreja, mas pelo outro está alinhada fundamentalmente contra ela. Isto constitui também o paradoxo verdadeiramente trágico desta orientação da reforma litúrgica, porque a liturgia sem a Igreja é em si uma contradição.

Onde todos agem para que todos se tornem sujeito, desaparece — com a Igreja sujeito comum — também o verdadeiro «ator» da liturgia. Esquece-se, de fato, que ela deveria ser «Opus Dei», em que Ele próprio atua em primeiro lugar e em que nós, precisamente por meio da sua ação, somos redimidos. Se o grupo se celebra a si mesmo, celebra na realidade um nada, porque o grupo não é o motivo para celebrar. E é por isso que o agir de todos produz aborrecimento: na realidade, nada acontece, se permanece ausente Aquele que todos esperam. A passagem a intuitos mais concretos, como se refletem na “Missa Nicaraguensis”, é assim simplesmente lógica.

Quem sustenta este modo de pensar deve por isso ser interrogado com toda a franqueza: a Igreja é mesmo só instituição, burocracia do culto, aparato de poder? O ministério sacerdotal é apenas monopolização de privilégios sacrais? Se não se conseguem superar estas concepções, mesmo no plano afetivo, e ver de novo com o coração a Igreja de outro modo, então a liturgia não será renovada, mas sim mortos sepultam outros mortos e a isto chamam reforma. Neste caso, naturalmente, já não há sequer a música da Igreja.

Antes, de direito, nem sequer se pode falar de liturgia, dado que esta pressupõe a Igreja: o que resta são rituais de grupo, que se servem mais ou menos habilmente de meios expressivos musicais. Se a liturgia deve sobreviver ou até ser renovada, é de necessidade elementar que a Igreja seja novamente redescoberta. E acrescento: se a alienação do homem deve ser superada, se ele deve reencontrar a sua identidade, é indispensável que reencontre a Igreja. Esta, de facto, não é uma instituição misantrópica, mas sim aquele novo Nós em que finalmente o Eu pode adquirir a sua base e a sua morada.

Na liturgia não importa fazer algo, mas ser Seria benéfico reler neste contexto com muita atenção o pequeno livro com que Romano Guardini, o grande pioneiro da renovação litúrgica, concluiu a sua obra literária no último ano conciliar. Ele próprio sublinha ter escrito este livro preocupado pelo amor à Igreja, da qual conhecia muitíssimo bem a condição humana e os seus riscos. Mas ele tinha aprendido a descobrir naquela humanidade o escândalo da encarnação de Deus: tinha aprendido a ver nela a presença do Senhor que fez da Igreja o seu Corpo. Somente se assim é, existe uma contemporaneidade de Jesus Cristo conosco. E somente se esta se verifica, existe uma liturgia real que não é somente um recordar o mistério pascal, mas sim a sua presença verdadeira. E ainda, somente se assim é a liturgia é participação no diálogo trinitário entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Somente deste modo a liturgia não é o nosso «fazer», mas sim «opus Dei» — o agir de Deus sobre nós e em nós. Por isso Guardini sublinhou expressamente que na liturgia não importa fazer algo, mas ser. Pensar que o agir de todos seja o valor central da liturgia, é o contrário mais radical que se possa imaginar perante a concepção que Guardini tem da liturgia. Na verdade, o agir de todos não só não é o valor fundamental da liturgia, mas como tal, não é de fato um valor.


Ponto de partida e norma para uma correta união de liturgia e música

Abstenho-me de aprofundar interiormente estes problemas; devemos concentrar-nos para encontrar o ponto de partida e a norma para uma correta união de liturgia e música. De fato, mesmo deste ponto de vista, é de grande alcance a constatação de que o verdadeiro sujeito da liturgia é a Igreja e, mais precisamente, a communio sanctorum de todos os lugares e de todos os tempos. Resulta daí, não só — como Guardini no seu escrito juvenil «Liturgische Bildung» mostrou de modo particularizado — a indisponibilidade da liturgia em relação ao arbítrio do grupo e do indivíduo (mesmo do clero e dos especialistas), em suma, aquilo que Guardini chamava a sua objetividade e a sua positividade.

Resultam daí sobretudo também as três dimensões ontológicas em que ela vive: o cosmos, a história e o mistério. A referência à história compreende um desenvolvimento, isto é, a pertença a algo de vital, que tem um início, o qual continua a operar, permanece presente sem estar concluído, e vive na medida em que se desenvolve interiormente. Algo se atrofia, algo é esquecido e regressa depois sob nova forma, sempre, porém, o desenvolvimento significa participação num início aberto para a frente. Com isto já tocámos uma segunda categoria que, posta em relação com o cosmos, adquire a sua importância específica: a liturgia compreendida desse modo vive na forma fundamental da participação.

Ninguém é o seu primeiro e único criador, para cada um ela é participação numa realidade mais ampla, que o supera, mas cada um é igualmente também um «ator», precisamente porque é receptor. A referência ao mistério, enfim, significa que o início do acontecimento litúrgico nunca está em nós próprios. É resposta a uma iniciativa do alto e a um ato de amor que é mistério. Os problemas existem para ser esclarecidos; o mistério, pelo contrário, não se desvela à clarificação mas somente quando é aceite no Sim que, à luz da Bíblia, podemos tranquilamente chamar obediência, ainda hoje.

Dimensões ontológicas da liturgia:o cosmos, a história e o mistério

Assim chegamos a um ponto de grande importância pela ligação com o fator artístico. A liturgia de grupo, de facto, não é cósmica, precisamente porque vive da autonomia do grupo. Não tem história, mas é caraterizada precisamente pela emancipação da história e pelo fazer por si mesmo, muito embora se trabalhe com cenários históricos.

Não conhece tão-pouco o mistério, porque nela tudo é esclarecido e deve ser esclarecido. Por isso, o desenvolvimento e a participação lhe são tão estranhos quanto a obediência.

Em lugar de tudo isto, coloca-se agora a criatividade em que a autonomia do emancipado tenta mesmo confirmar-se. Uma tal criatividade que quereria ser a atuação de autonomia e emancipação, precisamente por isso contrasta nitidamente com qualquer participação. Os seus sinais distintivos são o arbítrio como forma necessária de recusa de toda a forma ou norma existente: a irrepetibilidade, porque a repetição seria já dependência; a artificialidade, porque deve tratar-se realmente de pura criação do homem. Assim, porém, torna-se manifesto que a criatividade humana, que não quer ser, nem receber, nem participar, na sua essência é absurda e falsa, porque o homem unicamente recebendo e participando pode ser ele mesmo. Tal criatividade é fuga à condição humana e, por isso, falsidade. Por este motivo inicia a decadência da cultura quando, com a perda da fé em Deus, deve ser contestada também uma racionalidade que nos precede e é inerente ao ser.

Resumindo: erros de determinada concepção de liturgia Resumamos quanto até agora adquirimos, para poder depois tirar as consequências para o ponto de partida e para a forma fundamental da música própria da Igreja. Viu-se que o primado do grupo vem de uma compreensão da Igreja como instituição, baseada numa ideia de liberdade que não se presta a ser relacionada com a ideia e com a realidade da instituição e que já não está em condições de perceber a dimensão do mistério na realidade da Igreja. A liberdade é compreendida a partir das ideias mestras de autonomia e de emancipação. E concretiza-se na ideia da criatividade, que, neste pano de fundo, se coloca em contraste com aquela objetividade e positividade que são essenciais à liturgia eclesial. O grupo deve todas as vezes inventar-se ex novo, somente então é livre. Vimos também que a liturgia que merece este nome é radicalmente oposta a isto. Ela é contra o arbítrio a-histórico, que não conhece nenhum desenvolvimento, caminhando por isso no vazio; é contra uma irrepetibilidade que também é exclusivismo e perda de comunicação para além de cada agrupamento; não é contra a tecnologia, mas sim contra a artificiosidade em que o homem cria o seu contra-mundo, perdendo da vista e do coração a criação de Deus. Os contrastes são claros; no seu ponto de partida também é clara a motivação intrínseca do modo de pensar do grupo, ditado por uma ideia de liberdade compreendida de modo autonomístico. Agora, porém, devemos interrogar-nos positivamente acerca da concepção antropológica em que se baseia a liturgia no sentido da fé da Igreja.

3. O MODELO ANTROPOLÓGICO DA LITURGIA ECLESIAL

Duas palavras da Escritura se apresentam como chaves para responder à nossa pergunta. Paulo gravou o termo logikè latreía (Rom 12, 1) que dificilmente se pode traduzir numa das nossas línguas modernas porque lhes falta um equivalente real do termo Logos. «Serviço litúrgico determinado pelo Espírito», poderemos dizer, remetendo ainda para as palavras de Jesus relativas à adoração em espírito e verdade (Jo 4, 23).

Mas também se poderia traduzir «veneração de Deus plasmada pela Palavra» e, nesse caso, é natural que o termo «Palavra» na sua acepção bíblica (e também no mundo grego) é mais do que simples linguagem: é uma realidade criadora. E todavia é também mais do que uma simples ideia e do que um mero espírito: é o Espírito que se exprime, que se comunica. Desta realidade de fundo derivaram em cada época, como princípios preliminares, a referência à Palavra, a racionalidade, a compreensibilidade e a sobriedade da liturgia cristã e da música litúrgica.

Seria uma interpretação restritiva e falsa, se se quisesse compreender com isto uma rígida referência ao texto de toda a música litúrgica e se se quisesse declarar a compreensibilidade do texto como seu pressuposto geral. A Palavra, em sentido bíblico, é de facto mais do que um «texto», e a compreensão é mais ampla e profunda do que a banal compreensibilidade de quanto se vê logo com clareza, de quanto se pode sistematizar forçadamente a racionalidade mais genérica. É certo, porém, que a música que serve a adoração «em espírito e verdade» não pode ser êxtase rítmico, nem sugestão sensual ou atordoamento, nem sentimentalismo subjetivo, nem entretenimento superficial, mas antes está associada a um anúncio, a uma afirmação espiritual e racional, no sentido mais nobre. Com outras palavras: é certo, portanto, que do seu íntimo a música deve fundamentalmente corresponder a esta «Palavra», melhor, deve pôr-se ao seu serviço.

Com isto somos já levados para um outro texto bíblico, o fundamental para o problema do culto. Este texto diz-nos mais precisamente que coisa significa a «palavra» e que relação tem conosco. Estou a aludir à passagem do prólogo joanino: «E o Verbo Se fez carne e veio habitar no meio de nós e nós vimos a sua glória» (Jo 1, 14). Falando da «Palavra» a que se refere o serviço litúrgico cristão não se trata em primeiro lugar de um texto, mas de uma realidade viva: de um Deus, que é sentido que se comunica tornando-se Ele próprio homem. Esta encarnação é agora a tenda sagrada, ponto de referência de todo o culto, que é um contemplar a glória de Deus e dar-Lhe honra. Estas asserções do prólogo de João não são, porém, ainda tudo. Elas têm sido mal entendidas se lidas em separado dos discursos de despedida em que Jesus diz aos seus: «Eu vou e voltarei para junto de vós. Se vou, venho de novo.

É bem que eu vá, porque, se eu não for, não virá a vós o Consolador» (Jo 14, 2 s; 14, 18 s; 16, 5 ss. etc.). A encarnação é apenas a primeira parte do movimento. Ela adquire pleno sentido e torna-se definitiva somente na cruz e na ressurreição: da cruz o Senhor atrai tudo a Si e leva a carne, isto é, o homem, e todo o mundo criado para a eternidade de Deus.

A música litúrgica resulta da exigência e da dinâmica da encarnação da Palavra: Palavra feita carne e carne feita Palavra

A liturgia está submetida a esta trajetória e este movimento é, por assim dizer, o texto fundamental a que se refere toda a música litúrgica, como sua medida. A música litúrgica é uma consequência resultante da exigência e da dinâmica de encarnação da Palavra, porque esta significa que também entre nós a Palavra não pode ser simples falar. O modo central com que a encarnação continua a operar são em primeiro lugar os próprios sinais sacramentais. Mas eles acabam por ficar privados de um contexto vital, se não estiverem imersos numa liturgia que, na sua totalidade, siga esta expansão da Palavra na corporalidade e na esfera de todos os nossos sentidos. Daqui deriva, ao contrário dos tipos de culto judaico e islâmico, o direito, ou melhor, a necessidade de usar imagens. E daqui vem também a necessidade de não perder de vista as esferas mais profundas do compreender e do responder que se revelam na música. A fé que se torna música faz parte do processo da encarnação da Palavra.

Mas este tornar-se música é contemporaneamente unido, de modo totalmente único, àquela transformação interior do acontecimento da encarnação a que há pouco procurava acenar: Sobre a cruz e na ressurreição a encarnação da Palavra torna-se carne feita Palavra. Ambas se compenetram. A encarnação se retrata; torna-se definitiva somente no momento em que o movimento, por assim dizer, se inverte: a própria carne é «feita logos», mas precisamente este tornar-se Palavra da carne cria uma nova unidade de toda a realidade que Deus tem em tal conta que a pagou com a cruz do Filho. Tornar-se música da Palavra é por um lado encarnação; é trazer a si forças pré-racionais e meta-racionais, que são também tornadas sensíveis; é trazer a si o som escondido da criação, descobrir o canto que repousa no fundo das coisas. Mas assim, tornar-se música é já também a viragem do movimento: não é apenas a encarnação da Palavra, mas ao mesmo tempo espiritualização da carne. A madeira e o metal tornam-se som, o inconsciente e o indefinido torna-se sonoridade ordenada plena de significado. Alternam-se uma corporização que é espiritualização e uma espiritualização que é corporização. A corporização cristã é sempre também espiritualização e a espiritualização cristã é corporização que penetra no corpo do Logos  encarnado.

4. AS CONSEQUÊNCIAS PARA A MÚSICA LITÚRGICA

a) Questões de princípio

Enquanto se realiza na Música esta complementação de ambos os movimentos, ela serve na medida máxima e de maneira insubstituível àquele êxodo interior que a Liturgia sempre pretende ser. Isso significa que a conformidade da Música litúrgica é medida com base na sua correspondência a esta forma base antropológica e teológica. Uma tal afirmação à primeira vista, parece estar distante da concreta realidade musical.

Porém, torna-se subitamente concreta se observamos os modelos opostos de música para o culto, indicados por mim pouco antes.

Tipo dionisíaco de religião e sua música. Música Rock e Pop

Pensemos por momentos no tipo dionisíaco de religião e sua música, que Platão examinou a partir do seu ponto de vista religioso e filosófico. Em não poucas formas de religião a música é dirigida ao delírio, ao êxtase. A superação do limite da condição humana que a fome de infinito, própria do homem, procura, deve ser atingida por frenesim sagrado, de delírio do ritmo e dos instrumentos. Tal música destrói os limites da individualidade e da personalidade; o homem nela se liberta do peso da consciência. Música passa a ser êxtase, libertação do Ego, união com o universo. O retorno profanado deste tipo encontramo-lo hoje na música Rock e Pop, cujos festivais são um anti-culto na mesma direção: prazer na destruição, abolição das barreiras do dia a dia, ilusão de redenção na libertação do Ego, no êxtase furioso do ruído e da multidão. Trata-se de práticas de redenção, semelhantes à droga e fundamentalmente opostas à concepção de Redenção da fé cristã.

Assim, é consequência lógica que aumentem nesta área, hoje, cada vez mais cultos e músicas satânicas, cujo poder perigoso na intencionada destruição e dissolução da pessoa não foi ainda suficientemente tomado a sério.

O debate que Platão instituiu entre música dionisíaca e apolínica não é o nosso, porque Apolo não é Cristo. Mas a pergunta que ele levantou interessa-nos de forma muito significativa. Música tornou-se, hoje, uma forma que, uma geração antes, nem teríamos podido imaginar, um veículo decisivo de uma anti-religião e um palco de divisão dos espíritos. Porque a música Rock procura a redenção no caminho da libertação da personalidade e da sua responsabilidade, enquadra-se, de um lado, exatamente nas ideias anárquicas de Liberdade que hoje dominam no Ocidente mais abertamente do que no Oriente, mas justamente por isso é diametralmente oposta à ideia cristã sobre redenção e liberdade; é a sua verdadeira contradição. Não por motivos estéticos, não por insistência conservadora, não por imobilidade histórica, mas por uma questão de princípio deve a música deste tipo ser excluída da Igreja.

Poderíamos continuar a concretizar a nossa pergunta, analisando a base antropológica dos variados tipos de música. Há música de agitação, que anima o homem para diferentes finalidades coletivas. Há música sensual, que leva o homem ao erótico e à procura de outras satisfações sensuais. Há música só para entretenimento, que não pretende dizer nada, mas deseja apenas interromper o peso do silêncio. Há música racionalista, na qual os sons apenas servem a construções racionais, mas não alcança uma penetração verdadeira do espírito e dos sentidos. Certos cânticos inconsistentes, construídos sobre textos catequéticos, certos cânticos modernos construídos em comissões teriam aqui o seu lugar. A música que corresponde ao culto divino d’Aquele que se fez homem e foi elevado na cruz, vive de uma síntese maior, mais extensa de espírito, intuição e som perceptível. Pode-se dizer que a música ocidental, desde o canto gregoriano passando pela música das catedrais e da grande polifonia, pela música da Renascença e do Barroco até Bruckner e ainda para além dele, vem da riqueza interior desta síntese e desenvolveu uma plêiade de possibilidades. Esta grandeza só existe aqui, porque pôde crescer unicamente do fundamento antropológico que unia espiritual e profano numa última unidade humana. E ela se dissolve na medida em que desaparece esta antropologia. A grandeza desta música é para mim a verificação mais imediata e evidente da imagem cristã do homem e da fé cristã da redenção que nos oferece a história. Quem realmente é tocado por ela, sabe, no seu íntimo, que a fé é verdadeira, mesmo que necessite ainda de muitos passos para realizar esta intuição com inteligência e vontade.

fonte: Cléofas

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